Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, março 31, 2006

Artigo de Opinião: - 560: Comprar Nacional -



Ao adquirir algum produto, seja ele qual for, todos nós reparámos já num pequeno rectângulo branco, preenchido por um conjunto de listas negras na vertical e de grossura variável. É aquilo a que se chama o “Código de Barras”. Mas quem diria que essa banal e desinteressante componente de uma qualquer embalagem, pode constituir uma arma contra a estagnação da nossa economia, contra a morte da agricultura e da indústria nacional às mãos da importação e contra o desemprego? É verdade, é mesmo verdade. Tão simples quanto isto, ao escolher um determinado produto, verifique o respectivo “código de barras”. Geralmente, esse código é constituído por 13 dígitos (que estão colocados por baixo das barras negras), ora, caso os primeiros 3 dígitos formem um “560”, há uma grande probabilidade desse produto ser de fabrico português, logo, com mão-de-obra portuguesa.



Mas porquê este apelo? Ultimamente, todos temos visto e ouvido falar nos telejornais de um encerramento quase diário de fábricas e empresas que perecem em benefício da produção estrangeira. Com elas ficam no desemprego as famílias portuguesas, pais e mães, gente com prestações a pagar, gente que organiza uma vida em torno de um grupo, ao qual dedicam o seu tempo e esforço, e que, de repente desaparece. Naturalmente estas pessoas vão engrossar os centros de emprego pelo país fora, bem como as concessões de subsídio. Pessoas que raramente dispõem de outro tipo de formação, pelo que se torna quase impossível encontrar trabalho com a rapidez necessária. Tudo isto, claro, sem esquecer a enorme frustração e desespero em que caem estas famílias.


Campanha feita pelo grupo Auchan, apelando ao consumo de produtos nacionais.




É certo, poderão dizer-me que isso é fruto da concorrência estrangeira, que a economia de mercado é assim mesmo, que são os novos tempos, que as empresas pouco podem fazer senão partir em busca de mão-de-obra mais barata e igualmente ou mais qualificada, etc, etc… Outros ainda, dirão que isto é fruto da nossa Constituição e das nossas leis, que garantem direitos aos trabalhadores que não se coadunam com os lucros necessários para se poder fazer concorrência à produção estrangeira, mais barata. Ora, como nós, simples trabalhadores e consumidores, não possuímos fábricas nem somos chamados para legislar coisa nenhuma, resta-nos fazer o quê?



Bom, duvido que ir a hipermercados espanhóis ou alemães à procura de produtos mais baratos, estejamos a fazer algo de positivo nesse sentido… Ao comprarmos roupa, calçado ou todo o tipo de bugigangas “Made in China”, estamos a contribuir para o emprego nacional? Não me parece. Talvez nos pareça barato quando, por um pacote de bolachas, pagamos 0.45€ em vez de 1.20€, sem dúvida. Contudo, é provável que depois de uns anos a comprar as primeiras, acabemos por ver os impostos aumentados para pagar o subsídio de desemprego aos operários portugueses despedidos, por terem fechado as fábricas de bolachas mais caras. Enquanto isso, a fábrica das bolachas mais baratas, implantada no estrangeiro e empregando estrangeiros, enriquece e baixa ainda mais os preços (mas claro, só baixa nos locais onde ainda têm concorrência. Onde tem o monopólio até os pode aumentar). Dir-me-ão - Mas eu nem sou operário da fábrica de bolachas!! Que me importa?!” – Mas faça o seguinte, transporte o exemplo das bolachas para o vestuário, para o calçado, a carne, a pesca, metalurgia, lacticínios, electrodomésticos, automóveis, etc, etc… Talvez já o englobe a si, pois a concorrência está a estender-se a todos os sectores. Ainda me poderá dizer – Mas eu não sou operário de coisa nenhuma! Sou comerciante. – Pois acredite o caro leitor, que não há serviço absolutamente nenhum que sobreviva à ausência de poder de compra, e o sector dos serviços não se sustenta a si próprio, especialmente quando apenas os presta dentro do país de origem, como é o nosso caso. De resto, o famoso turismo estará sempre totalmente condicionado pela conjuntura internacional, logo não lhe podemos consagrar o pais. Portugal é um país pobre e, como tal, não se pode dar ao luxo de abdicar de uma agricultura e indústria que lhe alimente e sustente os serviços, ou seja, o comércio, a banca, as seguradoras ou a própria administração pública.



Vivemos hoje num mundo onde a actuação de cada indivíduo como consumidor é quase tão importante como a sua acção enquanto produtor de riqueza, ou seja, pelo trabalho que executa. Assim sendo, da mesma maneira que exigimos e nos é exigida eficiência e aprumo no trabalho que executamos, também devemos ser exigentes na racionalização e sensibilidade do consumo que praticamos. Ora, isto passa por uma cuidada reflexão sobre as consequências das nossas opções. Devemos pensar que os preços baixos dos produtos chineses ou do leste europeu têm origem na exploração desses trabalhadores, mal pagos, sem horários, sem férias, com uma protecção social precária e geralmente com trabalho infantil. Devemos pensar que os direitos dos nossos trabalhadores é que são justos e correctos, logo se os preços são mais altos é porque esse é o preço desses direitos, que são de manter. Somos democratas ou não?! É que esses países não são! Devemos pensar que ao comprarmos esses produtos estrangeiros estamos a por o nosso dinheiro fora do país. Logo, a culpa das falências não é de quem produz, de quem vende, ou do Estado que é permissivo, mas tão só do consumidor que não mede as consequências das suas opções. A prática e apelo ao consumo nacional torna-se uma possível arma ao dispor de cada um, uma opção, um contributo pessoal. Tendo em conta que a preferência pelo produto e pela produção nacional reverte para a estabilidade e independência económica de Portugal (onde é que ela já vai…!), bem como para a sobrevivência das nossas famílias, aqui fica o apelo:



Códigos de Barra iniciados em “560”, apontam para uma produção nacional, com a excepção dos produtos de peso variável (como as carnes ou os queijos), não começando por “560” mas por 26, 27, 28 ou 29. Em todo caso, verificar ainda a possível existência de uma elipse rodeando as letras “PT”, “P” ou “PORTUGAL”. É um gesto fácil e que faz a diferença. Para mais informações: http://560.adamastor.org/

sexta-feira, março 24, 2006

- A obra de D. Sancho I -


Estátua de João Cutileiro. Erigida à entrada do castelo, duante as comemorações dos 900 anos do Foral, concedido a Torres Novas por D. Sancho I.


Quem passa junto à actual porta principal do castelo de Torres Novas, depara-se com um busto lavrado em pedra, em representação de um rei. Foi a forma como a cidade torrejana decidiu homenagear o soberano que lhe terá concedido um verdadeiro corpo jurídico, ou seja, o Foral. Referimo-nos naturalmente a D. Sancho I, o segundo rei da monarquia portuguesa. Assinalam-se, neste 26 de Março, os 795 anos da sua morte. Vamos por isso procurar conhece-lo melhor.



Em 1154, ano em que nascia D. Sancho, o seu pai Afonso Henriques lidava em diversas frentes de luta. Por um lado as batalhas a sul com os muçulmanos, preparando-se novo assalto a Alcácer do Sal, por outro, o esforço de povoamento em zonas estratégicas de fronteira. Ainda os esforços diplomáticos constantes com os outros reis da Península Ibérica, procurando-se garantir a paz entre cristãos, bem como a já longa batalha junto do Papa, para que Portugal fosse reconhecido como reino independente. Em suma, eram tempos de total instabilidade e alerta. É nesse sentimento que cresce D. Sancho, sendo que cedo se acostuma a liderar as hostes e a acompanhar os passos do pai. Com apenas 15 anos já superintende alguns aspectos de governação do reino, aos 16 é armado cavaleiro pelo pai, e 2 anos depois, o rei associa D. Sancho no governo do reino, nomeadamente na gerência da defesa de Évora, de onde os cristãos assistiam ao repovoamento de Beja pelos muçulmanos. Aos 24 anos, lidera sozinho uma expedição a Sevilha, poderosa praça islâmica, causando grandes danos nos seus arredores. Dois anos depois, em 1180, o infante sobre a sua primeira grande derrota. Aconteceu perto de Ciudad Rodrigo, na Batalha de Arganal, frente ao exército do reino de Leão. 1184 seria um ano particularmente difícil para Portugal. Na verdade, a linha de defesa do Tejo, que se encontrava-se ainda pouco estabilizada, sofreria as poderosas incursões de Yusuf I, o califa almóada vindo do Norte de África, no decorrer das quais Torres Novas é devastada.



O ano seguinte, 1185, seria o ano da sua coroação, em Coimbra. Já com uns longos 45 anos de reinado, morre D. Afonso Henriques, tendo batalhado sempre até essa hora. Mas o novo rei seguir-lhe-ia os passos, prosseguindo o reforço da defesa fronteiriça e planeando novas ofensivas a Sul. Passou à História como “o Povoador”, o que remete para a sua principal acção governativa, ou seja, o esforço na consolidação de posições alcançadas pelos portugueses. Para tal, procede ao povoamento intensivo de variadas localidades, criando condições atractivas para que tal sucedesse. Por um lado, inicia um processo de doações, remetendo muitas vilas à protecção das ordens militares, que se tornavam donatárias e defensoras das suas gentes. Por outro, concedeu cartas de foral a muitas terras, criando aí um sistema de privilégios, que originava a ordem e estabilidade propícias à radicação de populações e consequente desenvolvimento defensivo dessas localidades. Noutras vilas, reorganizou a sua estrutura defensiva, devolvendo a segurança aos habitantes. Por fim, fundou novas vilas, suprindo a necessidade de se povoarem regiões com importância estratégica.


Vista interior do Castelo de Torres Novas.

Torres Novas conta-se entre as vilas que, depois de destruídas pelas incursões muçulmanas de 1190, terão recebido especial atenção por parte do jovem rei. Assim, após dar ordem de reconstrução das muralhas da fortaleza, terá criado a carta de privilégios de Torres Novas, estabelecendo-lhe como que um código jurídico, com a função de gerir a vida social e económica da povoação, ou seja, o Foral. Para quem não tenha a noção de como era o quotidiano medieval, não surge tão clara a verdadeira importância deste documento. A sociedade medieval cristã, constituía-se, como é sabido, por 3 estratos essenciais, o povo, o clero e a nobreza. Ora, era costume que as povoações se organizassem e florescessem em torno da protecção de um senhorio, fosse ele da nobreza ou do clero. Poderia ser um mosteiro ou convento, na dependência do qual viviam e trabalhavam os camponeses, ou, por outro lado, poderia ser um pequeno castelo senhorial, onde habitava um fidalgo guerreiro, que controlava as suas propriedades e fazia valer os seus direitos. E que direitos seriam esses? O senhor, dono das terras, junto do qual se estabeleciam as populações, firmava como que uma relação de interdependência com estas, ele dar-lhes-ia protecção e segurança, eles trabalhariam as suas terras, alimentando-se delas mas pagando-lhe com uma percentagem dessa produção. É mais ou menos a isto que se chama de “feudalismo”. O que sucedia, é que nem sempre esta relação de interdependência se estabelecia ou cumpria da forma mais justa, verificando-se muitas vezes situações de abuso de poder e de exploração das gentes, por parte do seu senhor. Ora, ao povo, que pouco podia, restava-lhe apelar ao rei, o que por vezes resultava mesmo em admoestação feita ao senhor. Mas como isto era extremamente raro, compreende-se a verdadeira importância de que se revestia a concessão de foral a uma povoação. Primeiro, elevava essa povoação e sua gente a um estatuto completamente distinto, uma vez que era alvo da atenção do rei e que passava a estar na dependência jurídica deste. Por outro, o facto de ter uma “legislação” própria contribuía grandemente para a salvaguarda dos abusos senhoriais, que assim, infringindo os foros, estariam em falta para com o próprio monarca. Por fim, ordenava o quotidiano dessas vilas, contribuindo para a paz e estabilidade social.


Imagem do castelo de Torres Novas.

É essencialmente esta a grande importância que D. Sancho teria para Torres Novas, prestando-lhe um serviço, de cujo agradecimento, o seu busto erigido em pedra é apenas um símbolo. De 1190 em diante, a vila de Torres Novas constitui-se como município de pleno direito, sem dúvida o verdadeiro incremento que faria dela uma das capitais da Estremadura medieval. A 26 de Março de 1211 morreria, após 26 anos de um reinado farto em guerras e disposições de todo o tipo, deixando um tesouro abundante e um país organizado politica, administrativa e economicamente. Encontra-se no mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, ao lado do túmulo do pai.


Imagem do foral concedido por D. Sancho I a Penedono.

sexta-feira, março 17, 2006

- D. João VI: Um rei incompreendido -


D.João VI

No passado dia 10 de Março assinalaram-se os 180 anos da morte deste rei, um homem verdadeiramente fintado pelo destino que, no fim de contas, foi sempre mal amado e pouco compreendido pela História. Façamos-lhe justiça pois.

Filho da rainha Dª Maria I, D. João era o segundo na linha de sucessão ao trono, não lhe competindo, portanto, a si, preparar-se para reinar. Esse seria o desígnio do seu irmão mais velho José, Príncipe da Beira. Acontece que, em 1788, o príncipe herdeiro morre de varíola, o que eleva João à primogenitura, então com 21 anos. D. João, até aí indiferente às questões de governo e dos afazeres do reino, era um bon vivant, habituado a entregar-se aos prazeres da caça e da “carne”, percorrendo os montados e conventos do reino em busca de distracção. Ser coroado era a última coisa que esperava ou sequer desejaria, não obstante, apenas 4 anos após a morte do irmão, o mal preparado D. João vê-se obrigado a assumir a regência. Na verdade, a deterioração mental da rainha, sua mãe, haveria de a incapacitar por completo no governo do reino, pelo que a partir de 1 de Fevereiro de 1792, D. João está por sua conta.


"Protecção de Junot a Lisboa" - ou Junot submete Lisboa, aqui figurada por uma mulher.

Em 1801, Napoleão, o líder da recém instaurada República Francesa, exige que Portugal feche os portos aos ingleses (chegando mesmo a instigar os espanhóis a invadir-nos, o que culmina com a tomada de Olivença). Isso implicaria uma afronta directa aos nossos aliados de sempre, pelo que, apesar de dizer que sim a Napoleão, D. João nunca chega a cumprir o acordo. Cansado de esperar, em 1807 Napoleão intima Portugal: Ou fecham os portos aos ingleses ou são invadidos! Pois, a 17 de Novembro desse ano, Portugal é invadido. Estando os exércitos de Napoleão já próximos de Lisboa, a 29 de Novembro, D. João, após combinação com os ingleses, dá ordem para que toda a corte embarque rumo ao Brasil, “(…)querendo evitar as funestas consequências que se podem seguir de uma defesa, que seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade”, segundo as suas palavras num decreto de 26 desse mês. É assim que se dá uma das operações mais insólitas na História europeia, sendo que, um reino europeu transfere a sua própria capital para um outro continente. Esta medida tem sido referenciada por muitos, ao longo da História, como um atestado de cobardia ao príncipe português, contudo, atente-se nas palavras de Napoleão no seu “Memorial de Santa Helena”, quando no exílio: “… a Inglaterra pôde, a partir daí, continuar a guerra; foram-lhe abertas as portas da América do Sul; organizou um exército na Península (…) Foi o que me perdeu”. Palavras para quê, quando é o próprio Napoleão a reconhecer nesta derrota a causa da sua derrocada?


Imagens da corte no Brasil.

Foi no Brasil que D. João passou os 14 anos seguintes, no decorrer dos quais, se assistiria ao florescimento dessas terras, transformando-se o Rio de Janeiro numa verdadeira metrópole económica e cultural. Enquanto isso, Portugal vivia dias de convulsão. Expulsos os franceses e afastados os aliados ingleses (que começavam já a abusar da liberdade em território português), as forças vivas da nação exigiam o retorno do rei à verdadeira capital histórica do reino, não se conformando com esta lateralidade. Por outro lado, o pensamento liberal inspirado na República Francesa começava a alastrar entre nós, verificando-se as primeiras exigências. E foram de tal ordem que, em 1820, se impõem por revolução. Isto obriga o rei a regressar a Portugal, deixando o filho mais velho, D. Pedro, no governo do Brasil. Chegado a Portugal, D. João VI é obrigado a jurar a Constituição, abdicando do poder absoluto.
Novos problemas se iniciavam assim para o rei. Por um lado, vendo-se de novo relegado a simples colónia, o Brasil proclamaria a independência, por intermédio do príncipe herdeiro D. Pedro, em 1822.


Proclamação da independência do Brasil por D. Pedro e sua coroação.

Por outro, o filho D. Miguel, apanhando-se em Portugal sem o irmão, resolve usurpar-lhe a sucessão ao trono, iniciando uma guerra civil. Na verdade, uma vez que o irmão resolvera encabeçar a revolta independentista do Brasil, fazendo-se proclamar imperador e traindo o rei, seu pai, D. Miguel não tinha qualquer razão para aguardar que D. Pedro se lembrasse de vir reclamar o trono de Portugal.


Dª Carlota Joaquina de Bourbon.

Por fim, D. João VI continuava a ter a seu lado o maior inimigo que a vida lhe reservaria, ou seja, sua esposa Dª Carlota Joaquina de Bourbon. Com ela havia casado em 1785, contando 18 anos e ela apenas 10. Filha do rei de Espanha, D. Carlos IV, passara a vida a tentar substituir-se ao marido no comando do reino. Tomara já partido por Espanha aquando das invasões instigadas por Napoleão. Também no Brasil havia tentado assumir a regência, juntamente com as possessões espanholas na América. Por fim, haveria de ser a principal instigadora do partido do seu filho predilecto, D. Miguel, um acérrimo absolutista, como ela própria. Segundo as más-línguas de então, dos nove filhos que teve com o rei, apenas 5 seriam verdadeiramente deste, sendo o resto fruto das suas aventuras sexuais. Segundo as palavras da esposa de Junot, ainda quando embaixador francês em Portugal, o pai de D. Miguel, “(…) segundo alguns, é um moço de cavalariça da rainha, segundo outros, um médico de Lisboa. Mas o indubitável é que não é filho de D. João VI”.

Posto isto, D. João VI morre inesperadamente a 10 de Março de 1826, na sequência de uma forte indisposição, ocorrida após o jantar de 4 desse mês. Análises químicas efectuadas recentemente às vísceras do rei, ainda conservadas, comprovam um envenenamento à base de arsénico, cuja dose quadruplicava a suficiente para o matar. Como não pode deixar de ser, a rainha é a grande suspeita desse assassínio, abrindo assim caminho à coroação do filho Miguel.


D. Miguel

D. João VI ficaria na História como um homem fraco, pacato, sem iniciativa, um glutão inveterado, sem normas básicas de higiene ou asseio. São famosas as suas descrições, vagueando pelos corredores do palácio com frangos assados inteiros nos bolsos das casacas engorduradas, sujas e gastas que se recusava a trocar… Ainda assim, preferível será lembrá-lo como um homem bom, com uma sorte má.

sexta-feira, março 10, 2006

- Quem é Maomé? -



No passado artigo que aqui deixei com o título “O passo em frente…à beira do precipício”, onde abordava o crescente conflito entre o “Ocidente” e o “Mundo Islâmico”, fiz uma afirmação que indignou alguns leitores, contactando-me depois por e-mail, o que agradeço. A dita afirmação era a de “que Deus e Alá são uma e a mesma divindade, apesar de com nomes diferentes”, sendo que os caros leitores consideraram ser uma comparação “confusa” e “despropositada”. Por vezes, o desconhecimento do outro leva-nos à sua rejeição, preferindo-se salientar as diferenças, em vez de procurar as semelhanças. Pois, creio que a paz se encontra na atitude oposta e foi isso que procurei deixar como mensagem final nessa frase. Não obstante, e como tudo tem a sua história, não ficará por explicar o porquê de “Deus” e Alá” serem “(…)uma e a mesma divindade(…)”. Recuemos então…

As famosas contendas entre “Mouros” e Cristãos, ocorridas já ao tempo da existência de Portugal, são, em última instância, o resultado de uma bipolarização religiosa extremamente bem organizada e estabelecida, respectivamente os lados cristão e muçulmano do mundo. Contudo, para compreendermos a origem dessa fortíssima frente islâmica, teremos de recuar ao século VI, viajando até ao longínquo Médio Oriente onde, por essa altura, se viviam as vésperas de uma autêntica convulsão espiritual e religiosa. A 20 de Abril de 570 nascia Muhammad, no seio da tribo Coraixita (Quraysh, “tubarão”), na movimentada cidade de Meca. Muhammad, ou Maomé, nasce órfão de pai, acabando por também perder a mãe aos 6 anos. Dois anos depois perde o avô paterno, seu tutor na orfandade. Passa então aos cuidados do tio paterno Abu Talib, que o cria como seu filho. Na adolescência Maomé foi pastor, tendo por vezes acompanhado o tio no comércio das caravanas de camelos, atingindo locais distantes como a Síria. Desta forma tornou-se uma pessoa viajada, conhecendo costumes e tradições religiosas de terras estrangeiras. Quanto à religião, naquele tempo o Médio Oriente era dominado por um paganismo algo difuso. Herdando das antigas tradições sumérias e egípcias, mas também já influenciados pelas divindades bizantinas, de origem romana, entregavam-se ao culto de diversas divindades masculinas e femininas, a que recorriam conforme as necessidades. Tinham a cidade de Meca como centro religioso, onde, por essa razão, era proibido guerrear, tendo todos o direito de ir em peregrinação com segurança. Meca tornar-se-ia, assim, um importante centro comercial na região, beneficiando da confluência de peregrinos e comerciantes.



Não concordando com esta profusão de deuses, surge em Meca uma facção religiosa de inspiração judaico-cristã, que defende um Deus único. Auto-intitulavam-se Hunafá, ou os “Crentes no Deus único de Abraão”. Acreditavam na mensagem profética de Jesus, Moisés, David, Jacob, Isaac, Ismael e Abraão, nos quais viam homens especialmente perfeitos, escolhidos por Deus como profetas, embora não divinos. Contudo, o facto de nunca a Bíblia ter sido traduzida para árabe, constituiria uma barreira que muito reduziu as hipóteses de evangelização desses povos. Postos à margem de um movimento cristão que se expandia a Norte e em latim, aguardavam o surgimento de um profeta árabe, que lhes transmitisse a mensagem divina e lhes desse as suas próprias escrituras sagradas. Maomé, que entretanto havia casado com uma viúva abastada, tornando-se num respeitável e prestigiado comerciante, era um seguidor hunafá, aguardando também ele por esse profeta. Tinha o hábito de fazer retiros espirituais nos arredores da cidade, bem ao estilo dos monges ascetas cristãos, que se isolavam de qualquer contacto humano para simples contemplação e oração. Uma gruta chamada Hira, era o local por si escolhido para esse isolamento e onde, pelo ano de 611, estando em oração, terá recebido a visita do arcanjo Gabriel, o mesmo que havia anunciado a Maria o nascimento de Jesus. O arcanjo terá então lido a Maomé as escrituras que este deveria memorizar e recitar. Maomé deveria difundir a mensagem, corrigindo as alegadas deturpações que os cristãos haviam feito à mensagem de Cristo. Para os muçulmanos, Maomé seria o mais recente e último profeta do Deus de Abraão, o portador da “mensagem actualizada”.

A forte oposição feita à crescente popularidade de Maomé, obriga-o a fugir de Meca, em 622, refugiando-se em Medina por 8 anos. Essa data constituiria o “ano zero” do calendário islâmico, denominada a Hégira, o equivalente ao nascimento de Jesus no calendário cristão. Em Medina, a influência e prestígio de Maomé aumentam de tal maneira que se torna num chefe político-militar, para além de religioso. Em 630 regressa a Meca vitorioso, implantando aí o centro de um Estado teocrático, que alastra em todas as direcções e atinge a dimensão conhecida.



Tudo isto muito resumido, permite-nos verificar que o Islamismo provém: 1º Da influência religiosa exercida pelo Cristianismo em expansão a Ocidente; 2º Da referência directa nos primeiros profetas bíblicos; 3º Da intercessão de uma entidade cristã, o arcanjo Gabriel; e, em último caso, tem a principal origem na simples ausência da tradução da Bíblia, uma mensagem a que um punhado de homens estava decidido a aceder. Hoje, e desde sempre, os muçulmanos acusam os cristãos de politeísmo, não lhes perdoando o conceito da “Santa Trindade”, ou seja, a divisão do Deus Único em 3 entidades. Condenam-nos também pela deificação de Jesus, que consideram ser homem, escolhido por Deus como portador da Verdade, mas não uma divindade ou parte dessa divindade. Da mesma forma rejeitam a criação de santos e ídolos de todo o tipo, cujo culto chega a suplantar o do próprio Deus. São estas, entre outras, as alegadas deturpações cristãs que o Islão se compromete a corrigir, crendo-se mandatado por Deus para tal. Em última análise, o Islão tem origem no cristianismo, com o mesmo Deus, ao qual chamam Allah, mas com uma mensagem que crêem mais actualizada e fiel à vontade desse Deus, que é também o nosso. Tudo o mais é poder e política, sendo apenas essa a origem de séculos e séculos de confrontos entre irmãos.

sexta-feira, março 03, 2006

Artigo de Opinião: -As piscinas Fernando Cunha - Higiene: um hábito histórico -


Piscinas Fernando Cunha (Torres Novas)

No início, a meio, ou no fim de um dia de trabalho, a possibilidade de nos deslocarmos a um sítio onde nos podemos despir, dar umas braçadas, tomar um duche de água quente e seguir caminho, é um bendito privilégio. Não me refiro a um período de ócio, tão pouco de desporto como trabalho de esforço físico. Trata-se de um acto de simples relaxamento, que garante o melhor desempenho das restantes actividades do dia e chega mesmo a criar dependência pela predisposição que origina. O simples despir das roupas na perspectiva de molhar o corpo, a cara, numa água mais quente ou mais fria, e onde se praticarão movimentos fora do habitual na presença de outros, torna-se numa iniciativa de certa forma ousada, tendo em conta o nosso natural habitat e um quotidiano que nos automatiza e adormece os sentidos. Origina como que um sentimento inicial de agressão, que se dilui rapidamente na adaptação mental que fazemos ao novo meio, o aquático. Feito o exercício e saindo com o duche tomado, cria-se um sentimento de dever cumprido e de limpeza, que condiciona positivamente o resto do dia. Mas o que interessa aqui verdadeiramente destacar, é o efeito benéfico na perturbação daquilo que o nosso cérebro incute como “o habitual”, predispondo o espírito para outras situações inovadoras, agressivas, ou simplesmente diferentes, que o dia a dia nos convida ou obriga a experimentar. A predisposição para a mudança e para a adaptação é um bem nos dias que correm, pelo que há que a exercitar. Neste contexto, as piscinas municipais Fernando Cunha surgem como um verdadeiro serviço que se presta à saúde, bem-estar e ânimo da população.

Este sentimento ou predisposição de que vos falo não é nada que tenhamos inventado agora, postos os novos conceitos de higiene e avanços tecnológicos. Desde há muito o Homem compreendeu os efeitos terapêuticos que o “banho social” tem na melhoria do seu desempenho pessoal e profissional. Para não recuar mais, temos na civilização romana a apoteose da máxima grega “mente sã em copo são”, nomeadamente no desenvolvimento e proliferação dessas infra-estruturas públicas que eram os banhos. Conhecido e desenvolvido já o termalismo medicinal, os romanos acrescentam ao banho nas piscinas de água fria, a técnica do banho a vapor, ou sauna, de origem grega. Após uma exposição, mais ou menos longa ao vapor (produzido por diferentes técnicas, como a de verter água fria em pedras a altas temperaturas), os poros abrem-se, induzindo à transpiração e consequente libertação de impurezas. Aí, e durante esse tempo, tratavam-se de negócios, discutia-se política, firmavam-se acordos, em suma, criava-se um verdadeiro momento de confraternização social e até de trabalho. Então, findo um certo espaço de tempo, fazia-se uma rápida incursão até ao compartimento ao lado, onde se mergulhava numa piscina de água bem fria, que fechava violentamente os poros abertos, concluindo o processo de limpeza. Com o passar do tempo, estas técnicas foram-se aperfeiçoando e tornando mais complexas. Surgem as salas de raspagem, onde com um estilete se retirava a pele velha, raspando todo o corpo antes do banho. As salas de massagem, onde se aplicavam óleos e essências depois do banho. Surge a separação rigorosa entre banhos de água fria, tépida e quente, bem como os vestiários, uma antecâmara onde tudo começava e terminava.


Imagens dos banhos romanos

Este acto social e de bem-estar físico torna-se num hábito de tal maneira abrangente que, rapidamente, prolifera por todo o espaço imperial. Todas as cidades queriam ter os seus banhos e os cidadãos mais abastados faziam construir em suas casas, os seus banhos privativos. Naturalmente que o faziam com requinte, forrando o espaço com mosaicos repletos de ilustrações, e enriquecendo-o com belas estátuas e fontes. As ruínas de Vila Cardílio, em Torres Novas, dão disso um bom testemunho, mostrando ainda, para além de ricos mosaicos, as arcadas do Hipocausto, sob as quais se fazia fogo e fazia circular o ar quente, que aquecia a água do tanque correspondente.


Termas romanas de Montbui, em Espanha. Construídas no séc.I a.C.

Com o fim da civilização romana e do seu domínio, estes actos culturais perdem o lugar, cedendo-o então aos hábitos menos delicados dos povos do Norte, que não vêem com bons olhos a exposição colectiva dos corpos semi-nus. No entanto, algumas milhas a Sudeste, um povo crescente e empreendedor procura absorver os ensinamentos culturais do que sobrava do Império Romano de Constantinopla, ou seja, o povo muçulmano. As movimentações comerciais e militares dos muçulmanos valeram-lhes uma vasta herança cultural e científica, adquirida especialmente entre os sábios romanos. Dessa herança constava a higienização do corpo através do banho, bem como o seu carácter de confraternização social que os muçulmanos elevam a um acto religioso. É então no seguimento das incursões militares muçulmanas pela Península Ibérica, que os “Banhos”, ou os hammams, retornam às nossas cidades. Situadas normalmente perto da mesquita, estas infra-estruturas assumiam um lugar central na organização da cidade islâmica, onde se reunia a população. Naturalmente que a frequência destes espaços estava sujeita à separação entre sexos, bem como de religiões diferentes, sendo que cristãos ou judeus, frequentavam os banhos em dias estipulados e sendo apenas assistidos por funcionários com a mesma religião. Com o advento da Reconquista, a presença cristã e católica proíbe uma vez mais aquilo que considerava ser uma promiscuidade e falta de moral e o espaço dos banhos é então reutilizado como cárcere ou simplesmente destruído.


Banhos árabes de Alcazar, construídos no séc. XI.

Pulando 8 séculos e voltando às piscinas municipais Fernando Cunha, fica uma possível inspiração no longo historial do uso dos banhos, para que se redescubram todas as potencialidades de um acto de higiene física e mental útil e que se quer também de alguma confraternização. As novas piscinas municipais são um sério sintoma de qualidade de vida em Torres Novas e cada vez mais gente o está a descobrir.