Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, abril 28, 2006

- “Morro bem. Salvem a Pátria! ” - (Sidónio Pais / 1872-1918)



Qual é o jornal, telejornal, colóquio universitário ou simples conversa de café, onde não se passe sistematicamente um atestado de incompetência ou vilanagem aos nossos políticos? Longe vão os tempos em que se rezava, diariamente, pela saúde e sabedoria de quem orientava o espaço comum, em que se depositava uma esperança e confiança genuínas, nos líderes tidos como providenciais. Com o desenrolar da História, a sociedade foi sendo educada para a informação, tornando-se mais exigente e vigilante, educada para a formação, tornando-se mais culta e capaz. A política perde espaço no coração popular e os novos heróis nascem de outras obras.

A 1 de Maio de 1872 nascia um dos últimos políticos heróis que o povo português acarinhou. O “pai dos pobres”, ou “aquele que amou o povo”, “protector das crianças”, o “Mártir” ou o “Grande Morto”, Sidónio Bernardino Cardoso da Silva Pais tornou-se num fenómeno relâmpago que, em apenas um ano e seis dias, consegue reunir os mais antagónicos apoios, liderar um golpe de Estado, congregar o apoio de toda a população, reformar o regime, reprimir rebeliões, escapar a um atentado e ser assassinado num outro.

Nascido em Caminha, a 1 de Maio de 1872, órfão de pai e irmão de 5, Sidónio divide a sua formação entre o Exército e a Universidade, onde acaba por se tornar catedrático como lente de Matemática, em Coimbra. Chega a vice-reitor dessa universidade no próprio ano da revolução de 1910. Tendo a sua actividade política começado entre grupos de conspiração republicana, apenas daria um contributo verdadeiramente activo na sequência da implantação da República. Sidónio movia-se facilmente nesse meio, próximo do futuro presidente Manuel de Arriaga, recebe um claro voto de confiança deste grupo ao ser convidado para integrar a Maçonaria coimbrã, em 1911.



Em 1912 é enviado como embaixador para Berlim. Aí permanecerá por 4 anos, no decorrer dos quais o seu pensamento e visão política se transforma, degenerando da sua prévia formação republicana. Com o advento da I Guerra Mundial e com o posicionamento português ao lado dos Aliados, Sidónio regressa a Lisboa, em 1916, onde é feito major. Na pasta, trazia uma nota alemã de declaração de guerra a Portugal. Não está contente com o rumo dado às relações externas portuguesas. Sidónio crê firmemente que, finda a guerra, a vitória será alemã e logo, considera que Portugal está no lado errado das trincheiras. Aprendera a admirar a eficácia do sistema presidencialista alemão, a disciplina daquele povo e de suas instituições. É isso que sonha para Portugal, e, no envio de tropas portuguesas para a frente de guerra vê o desbaratar de vidas por uma causa em que já não se revê.


Frente de batalha na I Guerra Mundial

Nos 10 meses que se seguem, Sidónio prepara um golpe militar que visa a destituição do Governo e a imposição de uma nova ordem. Não lhe foi difícil fazê-lo, na verdade, desde a Direita mais conservadora às esquerdas mais radicais, os apoios multiplicavam-se em torno do seu carisma. Reuniu monárquicos e socialistas, militares e clérigos, patrões e proletários, e na tarde de 5 de Dezembro de 1917, inicia um movimento que se conclui em 3 dias com o derrube do governo e a instituição de uma Junta Militar. “Dar estabilidade e prestígio à República e engrandecer e honrar o país”, é o ponto-chave do seu programa de Governo, que apresenta no dia 12 de Dezembro, para além da instituição do regime presidencialista. Começa então uma série de viagens por todo o país e, de Norte a Sul, Sidónio é aclamado por multidões em histeria. Note-se que 1918 foi um ano particularmente dramático, aliando-se à instabilidade económica (resultante da guerra) uma forte epidemia e mortandade, a população pedia ordem, trabalho, comida, justiça e nada disto encontrava com os sucessivos governos dos partidos instalados no poder, os quais Sidónio apelidava de “demagogos”.


O contacto com a população também através de desfiles.

A acção social por ele promovida logrou um apoio ainda maior da população, instituindo a “sopa dos pobres”, visitando hospitais e orfanatos, etc. A sua política de proximidade criou um verdadeiro coro de apoio aquele que Fernando Pessoa imortalizaria como o “Presidente-Rei”. Contudo, a sua tendência ditatorial, bebida na disciplina da hierarquia militar, cedo lhe valeu grandes inimizades. A proximidade que veio a estabelecer com os sectores mais conservadores e monárquicos, afastou o apoio socialista e sindical, que já então mobilizava grandes falanges de proletários. Por outro lado, o ostracismo a que votou os tradicionais partidos republicanos, valeu-lhe a oposição da Maçonaria que o havia acolhido anos antes, contando manipula-lo.

Dando-se por concluída a acção do seu governo provisório e convocando-se eleições, é a 28 de Abril de 1918 que Sidónio Pais será eleito Presidente da República. De Maio a Dezembro desse ano, sucedem-se os focos de rebelião e de contra ofensivas governamentais que aumentam a instabilidade do novo regime. O restabelecimento da censura prévia, a prisão política de dezenas de conspiradores, a proibição de manifestações sindicais, etc., move contra Sidónio todo um imenso leque de interesses económicos, sociais e políticos que ele procurou contrariar frontalmente. O regime assentava num só homem e morto o homem, acabava-se com a sua obra. Não obstante, permaneceu sempre ovacionado e querido pelo povo, que lhe reconhecia a delicadeza no trato, a honestidade no olhar e a força na acção.

Na noite de 14 de Dezembro, ele está decidido a embarcar no comboio rumo ao Porto, onde o aguardam tumultos populares. Todos lhe pedem para que fique, garantem-lhe não ser segura a viagem e que o aguardam os conspiradores. Sidónio responde-lhes: “Ou eles, ou eu!” e ruma ao Rossio. É então que, por entre um grande aparato policial e uma imensa multidão de aplausos e vivas, uma arma fura o cordão policial, e quando o major transpõe a entrada do grande átrio da estação, são disparados 2 tiros que o deitam por terra. Disseram, os que o agarraram, que antes de falecer suspirara a frase: “Morro, mas morro bem. Salvem a Pátria”.


Átrio da Estação do Rossio, o local do assassinato.

Sendo ou não verdade, o mito ficou. Muito para além do dito e do seu significado, ficou pela atitude e pela imagem, entretanto apagada da memória colectiva. Hoje, 134 anos depois do seu nascimento, Sidónio Pais é pouco mais que uma avenida junto à rotunda do Marquês de Pombal. É, pois, justo que lhe assinalemos a efeméride.

sexta-feira, abril 21, 2006

- Enfim Livres! -



Entre as páginas gloriosas da nossa História, algumas há que, quando esquecidas, deixam um triste e profundo vazio. Tal, restringe e diminui a eventual compreensão de um espírito ou de uma comunhão nacional, responsável pelo suceder da dita História. Assim, e porque este é um exemplo dessa negligência, evocamos hoje a memória do Conde D. Henrique, progenitor da nacionalidade, defunto a 24 de Abril de 1112. Recuemos.

Encontramo-nos em fins do século XI, período de intensas convulsões por toda a Península Ibérica. No Centro e Sul da península, o domínio muçulmano que se fazia ainda sentir, encontrava-se esquartejado em pequenos reinos independentes que se digladiavam entre si, os chamados “reinos Taifas”. Essa separação, fruto do colapso do califado omíada, bem como da ambição independentista dos líderes regionais muçulmanos, contribuiria grandemente para a vulnerabilidade desses territórios. Ora, entre esses pequenos reinos ou Taifas, aqueles que faziam fronteira com o Norte peninsular, acabavam sofrendo as incursões cristãs, que aproveitavam a falta de coesão dos muçulmanos para alargar os seus domínios. O maior protagonista destes movimentos de expansão cristã era D. Afonso VI, rei de Leão. O seu ímpeto guerreiro leva-o até à cidade de Toledo, importante capital islâmica situada no coração da península, que conquista em 1085. A par desta cidade, outras, como Santarém e Lisboa, ambas pertencentes à taifa de Badajoz, acabariam na posse dos cristãos. A proximidade destes à taifa de Sevilha, levaria a que o rei desta cidade pedisse auxílio militar aos Almorávidas, povo também muçulmano, dominante no Norte de África e que, em 1086, atravessava o Estreito de Gibraltar em busca dos cristãos.


Possivel aspecto de D. Henrique, partindo rumo à Península Ibérica.

Neste processo de reconquista cristã, o rei de Leão contaria com o auxílio de guerreiros vindos de outros pontos da Europa, que não da Península Ibérica. D. Henrique de Borgonha será um deles. Descendente directo dos reis de França e membro do ducado francês da Borgonha, Henrique era o mais novo entre seus irmãos, não podendo por isso adquirir títulos ou fortuna por herança. O ducado da Borgonha caberia ao seu irmão mais velho Hugo, pelo que, Henrique opta por partir como cruzado para Sul. Sem o estatuto de varonia estes filhos segundos teriam de buscar prestígio e riqueza por meio de acções militares, onde se pudessem destacar por serviços prestados a algum rei, que os compensasse depois com títulos e fortuna. Foi o que sucedeu com D. Henrique. Colocando-se ao serviço de D. Afonso VI de Leão, juntamente com seu primo Raimundo, logo Henrique se destacará pela sua bravura, no combate aos muçulmanos. Com o seu auxílio, o rei leonês conquistará todo o território da Galiza, descendo por Coimbra, até Santarém e Lisboa.


O Conde D. Henrique

A força e o prestígio alcançados por D. Afonso VI, através de sucessivas vitórias, valeram-lhe a reunificação e reorganização dos domínios cristãos da península. Convinha, contudo, repartir esses territórios por diferentes chefias, procurando fortalece-los contra a resposta muçulmana protagonizada pelos mencionados Almorávidas. Assim, em 1091, a toda a região da Galiza e territórios ocidentais recém-conquistados (Coimbra, Santarém, Lisboa), caberia a chefia de D. Raimundo, primo de Henrique e recém-casado com a filha de Afonso VI, Dª Urraca. Contudo, este não conseguiria manter as conquistas mais a Sul, perdendo toda a linha do Tejo para os Almorávidas. É então que D. Afonso VI decide reforçar ainda mais a sua estratégia de defesa, dividindo a área de chefia de D. Raimundo. D. Afonso VI pretende então recompensar os serviços prestados por D. Henrique, concedendo-lhe em 1093 a mão de Dª Teresa, sua filha ilegítima, bem como o Condado Portucalense. Desta forma, é-lhe atribuído o controle militar e administrativo da zona mais exposta aos “mouros”, ou seja, a zona que equivale ao actual Norte de Portugal, ficando D. Raimundo com a área da actual Galiza.


D. Henrique com a esposa Dª Teresa

A sagacidade do jovem conde é imediatamente perceptível na forma como organiza os seus domínios, com vista a uma progressiva expansão e autonomia dos mesmos. Começa por procurar ganhar poder junto das cortes, integrando-se entre as mais poderosas famílias da nobreza, concedendo-lhes amplos privilégios no condado e integrando-as na sua própria corte. Por outro lado, estabelece a prioridade de povoar e valorizar o seu território, criando dificuldades às eventuais ofensivas de Sul. Cria então novas vilas em locais estratégicos, e concede foral a outras, organizando-lhes as actividades e definindo regras de convivência, o que atraía e fixava populações. Guimarães é um exemplo de localidade por ele fundada. Idealizara-a como pólo urbano de atracção mercantil, usando da concessão de privilégios para atrair francos, seus compatriotas, gente de perfil burguês, mercadores e comerciantes que desenvolveriam riqueza no condado. É aí que fixa residência, criando seus próprios paços, onde instala a família e a sua corte. Por fim, desenvolve uma relação de grande cumplicidade com o meio eclesiástico, dispondo-se pessoalmente a lutar pelo prestígio do bispado de Braga, que chega, então, a ultrapassar Santiago de Compostela.


Castelo de Guimarães

O seu prestígio permitir-lhe-ia auto-intitular-se “Conde e Senhor de todo o Portugal”, e a discutir com Dª Urraca a sucessão do trono de Leão, após a morte de D. Afonso VI. É então que acaba por falecer, a 24 de Abril de 1112, quando, na cidade de Astorga (Espanha), acabara de fazer a paz com a dita princesa, rumando o corpo à Sé de Braga. Falecido o conde, ficaria a viúva, Dª Teresa, no governo do condado, enquanto durasse a menoridade do único filho sobrevivente do casal, D. Afonso Henriques, futuro Rei de Portugal. Enfim livres, iniciavam uma profícua Casa Real, tutelar de um desígnio, semente de uma epopeia, musa dessa irmandade que é ainda Portugal.

sexta-feira, abril 14, 2006

- A mais triste Páscoa -


Relato contemporâneo do pogrom de 1507, em Lisboa.

Ao longo dos primeiros anos de 2000, sucedem-se, por muitas terras de Portugal, as comemorações dos 500 anos da entrega de Foral novo pelo rei D. Manuel I. Torres Novas não é excepção, assinalando esse momento memorável em 2010. Contudo, nesse mesmo período, não se assistiam apenas às epopeias marítimas, ou aos proveitos comerciais, nem só de profundas reformas e de certa prosperidade viviam as nossas gentes, tornando-se necessário lembrar momentos menos felizes e que convêm reter. O ano de 1506, ano em que seria finalmente ratificado o Tratado de Tordesilhas pelo Papa, foi um ano especialmente difícil para uma população que, logo em Janeiro, começara a sentir os efeitos de uma forte peste, que chegara a matar cerca de 130 pessoas por dia. Tratava-se de um período de profunda seca, vinda já do Verão anterior, factor que, aliado à falta de higiene inerente aos tempos ou à abundância de lixo que grassava pelas cidades, viria a potenciar os efeitos da dita peste. Contudo, a mentalidade da época haveria de lidar com estes factores naturais de uma forma muito própria, e tendo seres humanos como únicas vítimas: A matança de judeus no “Pogrom de Lisboa”, a 19 de Abril de 1506. Recuemos então.

Entre 1450 e 1480, vive-se em Portugal um tempo de especial estabilidade entre as autoridades cristãs e a comunidade judaica residente. Os judeus constituíam, então, referência no domínio da medicina, advocacia, geografia, economia e finanças, chegando mesmo a ocupar o cargo de ministro de Estado. Contudo, a crescente perseguição de que eram alvo em Castela, acusados de heresia e deicídio, levaria a que muitos buscassem em Portugal a paz e segurança necessários ao desenvolvimento da sua actividade. Ora, essa actividade era sobretudo financeira, exercendo-a no decorrer do desenvolvimento comercial, propiciado por um tráfego marítimo em rápida ascensão. Contudo, já nas Cortes de 1472 se haviam mostrado preocupações pela monopolização que os judeus faziam da área comercial e financeira do reino, o que constituía um sintoma precoce do que seguiria. Este mal-estar e clima de desconfiança, inveja e insegurança de parte a parte, que se vivia já, fora fortemente intensificado no ano de 1484 e em diante, quando maiores contingentes de judeus chegam a Portugal, fugidos da Inquisição espanhola, gente desenraizada, sem casa ou trabalho, e que vem aumentar a instabilidade já existente. A integração destes imigrantes, auxiliados pelas comunidades judaicas já instaladas, acaba por aumentar a concorrência aos mesteirais e mercadores portugueses, que, tendo-os por hereges, desenvolvem um ódio crescente que se alimenta, não só de razões económicas, mas também religiosas. Ao tempo, D. João II procura refrear os ânimos, evitando uniões concertadas contra os judeus, mas punindo a divulgação do judaísmo.

A escalada deste ódio tomaria proporções consideráveis quando, a 31 de Março de 1492, os reis católicos de Castela, pretendendo a unificação religiosa, expulsam por decreto todos os judeus não convertidos. Cerca de 90 000 judeus terão, então, entrado em Portugal, com a conivência de D. João II, que terá recebido dinheiro dos seus representantes, bem como técnicos judeus especializados na metalurgia e outras artes bélicas (afim de custear a alimentar a guerra com o Islão), em troca da permissão para fixação destas comunidades no reino. A tolerância do rei para com os judeus, que se devia essencialmente aos proveitos financeiros que a Coroa deles tirava (como mercadores ricos que eram), sofre um grande abalo quando, após a morte de D. João II em 1495, o seu primo e sucessor D. Manuel pretende negociar casamento com Dª Isabel, princesa de Castela.


D. Manuel I

Só que esta impõe como condição a expulsão de todos os hereges de Portugal antes da sua chegada, ao que o novo rei acede através do Decreto de 5 de Dezembro de 1496. Contudo, D. Manuel sabia que a expulsão dos judeus implicaria a perda da imensa riqueza, intelectual e financeira que estes encerravam. Procura então adiar e adaptar aos seus interesses o compromisso que fizera com a princesa. Assim, a partir de 1497, dá início a um processo de aliciamento à conversão, concedendo vastos privilégios, chegando mesmo a ordenar campanhas de conversão forçada aos resistentes, que chegavam a ser arrastados até às pias baptismais.


Decreto da conversão geral, por D. Manuel I em 1497.

Esta situação atingiria o auge em 1506, mais propriamente no dia 19 de Abril. Como anteriormente referido, este ano de terrível seca propiciava e agravava uma peste que espalhava a mortandade pelo reino. A mentalidade da época, fortemente condicionada pelos padrões religiosos de então, buscava no Divino as razões de tais castigos e a sua remissão. Multiplicavam-se as missas e procissões, com centenas de populares, o que fomentava ainda mais o contágio. Num desses ajuntamentos, na Igreja de S. Domingos, junto ao Rossio de Lisboa, tendo alguns clamado ter visto uma chama brilhante saída do crucifixo do altar, logo se tomou a visão por milagre e pronuncio do tão desejado perdão divino. Por azar seu, um judeu convertido lembrou-se de comentar o que, provavelmente, não passaria do reflexo solar no crucifixo, e de sugerir que “era melhor que fosse um milagre de água e não de fogo, pois, com a seca, é de água que precisamos!”. Ora os cristãos, tomando isto por zombaria, caem sobre o pobre, matando-o e queimando-o logo ali, junto à igreja. O seu irmão, que ali veio interceder pelo moribundo, também acabaria de igual sorte. Ficaria conhecido por “Pogrom de Lisboa” ou a “Matança da Pascoela”, os três dias que se seguiram. Tomada pela fúria e logo incitada pelos frades dominicanos, move-se a população por Lisboa fora, em busca de outros judeus, crendo que, matando-os, livraria o reino do pecado da heresia destes falsos cristãos, que mantinham o culto judaico, apesar do baptismo cristão. Ao longo desses dias, e sem que o rei pudesse controlar a populaça em fúria, foram invadidos, pilhados e incendiados os lares judaicos, as suas famílias perseguidas, mulheres violadas, grávidas com fetos arrancados, crianças mortas com requintes de malvadez, etc. Todos mortos, atirados pelas janelas e queimados em fogueiras improvisadas nas ruas. Chegam-nos descrições de judeus e até de portugueses, como o próprio Damião de Góis, da imensa violência, do cheiro intenso a carne humana queimada, dos gritos, das fugas, do ódio daqueles 3 dias. Quando tudo terminava, à falta de gente para matar, contavam-se cerca de 4000 vítimas mortais… e um reino certamente menos redimido.

sexta-feira, abril 07, 2006

- O grito do Ipiranga: "Independência ou Morte!" -



No seguimento de outros artigos já aqui apresentados sobre o vasto e apaixonante tema do Império Português de Oitocentos, vamos recordar o momento da independência da colónia brasileira e, resumidamente, encontrar-lhe algumas causas e consequências. Assinalam-se neste 7 de Abril, 175 anos que D. Pedro, príncipe herdeiro do trono português e Imperador do Brasil, abdicou dos seus direitos à coroa brasileira em favor de seu filho Pedro, futuro D. Pedro II do Brasil. A este pretexto, vejamos como tudo terá começado.

Já antes aqui lembramos o terror das invasões francesas, de 1807, bem como o reinado azarado e pouco energético de D. João VI, ora, o processo de independência do Brasil decorre de tudo isto. A proximidade dos exércitos franceses da capital do reino português obriga o rei a abandonar o país, a 29 de Novembro de 1807, embarcando rumo ao Brasil com toda a sua Corte e garantindo desta forma a independência do reino, uma vez que lhe transferia a capital para local distante. Aí, na cidade do Rio de Janeiro, instala-se uma Corte que floresce rapidamente. O ritmo político, económico e cultural da colónia que agora era metrópole, sofre um intenso incremento, constituindo-se como uma autêntica capital, em breve plenamente dotada das estruturas próprias desse estatuto. A par desse incremento, surge uma elite intelectual que se considera inteiramente brasileira e muito pouco portuguesa, uma gente culta, educada junto da Corte e que, ao longo dos 14 anos que esta por lá se radicou, sente o rei e sua família como seus, naturalmente seus, a despeito de Portugal. Lembremos que, enquanto isto, Portugal vivia convulsões sucessivas. Após o duro processo de combate às 3 invasões napoleónicas, surge o ensejo de expulsar os aliados ingleses que, obtida a vitória sobre os franceses, aqui continuavam quase que numa posição de permanente chefia e livre usufruto do reino, o que desesperava já quer a população, quer os altos quadros portugueses. Finalmente dá-se a tão desejada desmobilização dos aliados que voltam para Inglaterra. Esse factor abriria caminho às pretensões de portugueses que constituíam uma crescente facção de inspiração liberal, formada politicamente à luz das ideias da Revolução Francesa, e que pretendia o rápido regresso do rei e a instauração de uma Monarquia Constitucional no reino. Esse modelo de governo consistia na abolição do poder absoluto do rei, bem como das Cortes tradicionais, substituindo-o por uma Carta Constitucional estabelecedora de leis que o rei deveria jurar respeitar e defender, mas executadas por um parlamento independente. Ora, estes homens alargam esse movimento, acabando por instaura-lo através de revolução, a “Revolução Liberal” de 24 de Agosto de 1820, com origem no Porto.

Todos exigiam o regresso do rei. Portugal recusava-se a ser colónia do Brasil e, se uns exigiam que aquele viesse jurar a Constituição, outros exigiam que viesse por fim à dita revolução. A 3 de Julho de 1821 o rei entra na barra do Tejo, regressa forçado a Lisboa onde o espera um país virado do avesso. Traz consigo a família, embora tenha deixado na regência do Brasil o seu filho Pedro, herdeiro do trono português. Já antes havia pedido que viesse este a Lisboa negociar com os revoltosos, contudo, o príncipe recusar-se-ia relutante, já fortemente influenciado pelos partidários de uma rápida independência do Brasil. Na verdade, D. Pedro formou-se enquanto homem e príncipe ao longo de 13 anos, no seio dessa elite política brasileira, onde colhia cumplicidades e fidelidades que não lhe lembravam saudades de Portugal, ao mesmo tempo que formava um espírito fortemente liberal.


Partida da Família Real para Lisboa

É então que, sob influência de um parlamento lisboeta pouco amigo da elite política brasileira, o rei decide retirar ao Brasil os privilégios que lhe havia concedido aquando do exílio da Família Real, relegando-o novamente a mera colónia, após 13 anos de capital. Naturalmente que esta atitude muito irritou as gentes do outro lado do Atlântico, que não aceitavam esta descriminação. Mais do que nunca estava ao rubro o ensejo independentista no Brasil, ao qual o príncipe dava viva voz. Acrescendo, este apoia deliberadamente a revolta dos constitucionalistas no Porto, pelo que, face à rebeldia perante as ordens e posições do rei, este ordena-lhe que volte imediatamente a Portugal, ao que o príncipe responde com o célebre “Eu fico!”. Ora, a 7 de Setembro de 1822, chega ao Brasil missiva de D. João VI, retirando a regência do Brasil a D. Pedro e ordenando o seu regresso a Portugal uma vez mais. É nesse mesmo dia que, estando na zona de S. Paulo, junto ao Rio Ipiranga, a indignação do príncipe atinge o auge, e quando todos lhe aguardam uma reacção à carta do pai, este grita em plenos pulmões: “Independência ou Morte!”, perdendo-se para sempre as terras do Brasil. É, com total apoio dos brasileiros, proclamado Imperador a 12 de Outubro seguinte e coroado solenemente a 1 de Dezembro desse mesmo ano.


O "Grito do Ipiranga".

Conforme esperado, D. Pedro transformaria o Brasil numa monarquia constitucional, contudo, menos esperado, será o rápido decréscimo do imenso carisma com que iniciara o seu reinado. A ambição da Assembleia Constituinte brasileira toma proporções quase republicanas, apontando os poderes de dissolução da Câmara e de moderação como faculdades absolutistas atribuídas pela Carta ao Imperador. Como este não quisesse abdicar de ser a autoridade máxima no governo imperial, mantém a sua posição e vê a sua popularidade descer ao ponto de, a 7 de Abril de 1831, ser forçado a abdicar a favor do seu filho Pedro, que, com apenas 6 anos, ficará destinado a assumir a coroa imperial como D. Pedro II.

Por seu lado, D. Pedro retorna a Portugal, em busca do trono que traíra e do qual abdicara. Para tal, serve-se de apoios estrangeiros e das ambições dos liberais, que então alimentavam pequenos focos de guerrilha contra os partidários de D. Miguel, seu irmão, agora legítimo herdeiro do trono, segundo a Lei em vigor, apesar do seu despotismo e violência. Mas essa é outra história.