Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, março 03, 2006

Artigo de Opinião: -As piscinas Fernando Cunha - Higiene: um hábito histórico -


Piscinas Fernando Cunha (Torres Novas)

No início, a meio, ou no fim de um dia de trabalho, a possibilidade de nos deslocarmos a um sítio onde nos podemos despir, dar umas braçadas, tomar um duche de água quente e seguir caminho, é um bendito privilégio. Não me refiro a um período de ócio, tão pouco de desporto como trabalho de esforço físico. Trata-se de um acto de simples relaxamento, que garante o melhor desempenho das restantes actividades do dia e chega mesmo a criar dependência pela predisposição que origina. O simples despir das roupas na perspectiva de molhar o corpo, a cara, numa água mais quente ou mais fria, e onde se praticarão movimentos fora do habitual na presença de outros, torna-se numa iniciativa de certa forma ousada, tendo em conta o nosso natural habitat e um quotidiano que nos automatiza e adormece os sentidos. Origina como que um sentimento inicial de agressão, que se dilui rapidamente na adaptação mental que fazemos ao novo meio, o aquático. Feito o exercício e saindo com o duche tomado, cria-se um sentimento de dever cumprido e de limpeza, que condiciona positivamente o resto do dia. Mas o que interessa aqui verdadeiramente destacar, é o efeito benéfico na perturbação daquilo que o nosso cérebro incute como “o habitual”, predispondo o espírito para outras situações inovadoras, agressivas, ou simplesmente diferentes, que o dia a dia nos convida ou obriga a experimentar. A predisposição para a mudança e para a adaptação é um bem nos dias que correm, pelo que há que a exercitar. Neste contexto, as piscinas municipais Fernando Cunha surgem como um verdadeiro serviço que se presta à saúde, bem-estar e ânimo da população.

Este sentimento ou predisposição de que vos falo não é nada que tenhamos inventado agora, postos os novos conceitos de higiene e avanços tecnológicos. Desde há muito o Homem compreendeu os efeitos terapêuticos que o “banho social” tem na melhoria do seu desempenho pessoal e profissional. Para não recuar mais, temos na civilização romana a apoteose da máxima grega “mente sã em copo são”, nomeadamente no desenvolvimento e proliferação dessas infra-estruturas públicas que eram os banhos. Conhecido e desenvolvido já o termalismo medicinal, os romanos acrescentam ao banho nas piscinas de água fria, a técnica do banho a vapor, ou sauna, de origem grega. Após uma exposição, mais ou menos longa ao vapor (produzido por diferentes técnicas, como a de verter água fria em pedras a altas temperaturas), os poros abrem-se, induzindo à transpiração e consequente libertação de impurezas. Aí, e durante esse tempo, tratavam-se de negócios, discutia-se política, firmavam-se acordos, em suma, criava-se um verdadeiro momento de confraternização social e até de trabalho. Então, findo um certo espaço de tempo, fazia-se uma rápida incursão até ao compartimento ao lado, onde se mergulhava numa piscina de água bem fria, que fechava violentamente os poros abertos, concluindo o processo de limpeza. Com o passar do tempo, estas técnicas foram-se aperfeiçoando e tornando mais complexas. Surgem as salas de raspagem, onde com um estilete se retirava a pele velha, raspando todo o corpo antes do banho. As salas de massagem, onde se aplicavam óleos e essências depois do banho. Surge a separação rigorosa entre banhos de água fria, tépida e quente, bem como os vestiários, uma antecâmara onde tudo começava e terminava.


Imagens dos banhos romanos

Este acto social e de bem-estar físico torna-se num hábito de tal maneira abrangente que, rapidamente, prolifera por todo o espaço imperial. Todas as cidades queriam ter os seus banhos e os cidadãos mais abastados faziam construir em suas casas, os seus banhos privativos. Naturalmente que o faziam com requinte, forrando o espaço com mosaicos repletos de ilustrações, e enriquecendo-o com belas estátuas e fontes. As ruínas de Vila Cardílio, em Torres Novas, dão disso um bom testemunho, mostrando ainda, para além de ricos mosaicos, as arcadas do Hipocausto, sob as quais se fazia fogo e fazia circular o ar quente, que aquecia a água do tanque correspondente.


Termas romanas de Montbui, em Espanha. Construídas no séc.I a.C.

Com o fim da civilização romana e do seu domínio, estes actos culturais perdem o lugar, cedendo-o então aos hábitos menos delicados dos povos do Norte, que não vêem com bons olhos a exposição colectiva dos corpos semi-nus. No entanto, algumas milhas a Sudeste, um povo crescente e empreendedor procura absorver os ensinamentos culturais do que sobrava do Império Romano de Constantinopla, ou seja, o povo muçulmano. As movimentações comerciais e militares dos muçulmanos valeram-lhes uma vasta herança cultural e científica, adquirida especialmente entre os sábios romanos. Dessa herança constava a higienização do corpo através do banho, bem como o seu carácter de confraternização social que os muçulmanos elevam a um acto religioso. É então no seguimento das incursões militares muçulmanas pela Península Ibérica, que os “Banhos”, ou os hammams, retornam às nossas cidades. Situadas normalmente perto da mesquita, estas infra-estruturas assumiam um lugar central na organização da cidade islâmica, onde se reunia a população. Naturalmente que a frequência destes espaços estava sujeita à separação entre sexos, bem como de religiões diferentes, sendo que cristãos ou judeus, frequentavam os banhos em dias estipulados e sendo apenas assistidos por funcionários com a mesma religião. Com o advento da Reconquista, a presença cristã e católica proíbe uma vez mais aquilo que considerava ser uma promiscuidade e falta de moral e o espaço dos banhos é então reutilizado como cárcere ou simplesmente destruído.


Banhos árabes de Alcazar, construídos no séc. XI.

Pulando 8 séculos e voltando às piscinas municipais Fernando Cunha, fica uma possível inspiração no longo historial do uso dos banhos, para que se redescubram todas as potencialidades de um acto de higiene física e mental útil e que se quer também de alguma confraternização. As novas piscinas municipais são um sério sintoma de qualidade de vida em Torres Novas e cada vez mais gente o está a descobrir.