Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, dezembro 30, 2005

- “Foi tudo prò maneta” -



Correndo o risco de nem todos os leitores estarem familiarizados com o dito, “Ir para o Maneta” é uma expressão que sobrevive ainda com considerável vitalidade por diversas zonas do país. Seja por acidente, por roubo ou falta de atenção, quando algo se perde irremediavelmente, lá vem o dito: “Foi tudo prò maneta !”. Pois neste dia 30 de Dezembro, faz anos que morreu o tal “Maneta”, e proponho que o conheçamos.

Num artigo anterior, assinalava os 198 anos da primeira invasão francesa em Portugal, ordenada por Napoleão e comandada pelo seu general Andoche Junot. Foi nesse mesmo ano de 1807 que, acompanhando Junot, um outro homem entra em Portugal com o intuito de fazer prevalecer a força do imperador francês, esse homem era Louis-Henri Loison. General francês de apenas 36 anos, contava já uma extensa e bem sucedida carreira militar, ao comando das legiões napoleónicas que se estendiam por toda a Europa. Alistando-se em 1791 num batalhão de voluntários, era já tenente quando a França declara guerra à Alemanha, um ano depois. Outro ano volvido, 1793 consagra-o já capitão, servindo na frente de guerra da actual Bélgica. Aí, Loison lidera o grupo que leva a cabo a pilhagem da riquíssima e célebre abadia de Orval. Chega a general em 1799, quando, muitas pilhagens depois, é enviado para a Suíça às ordens do General Massena.

Em inícios de 1806, uma tarde de caça não lhe corre de feição e Loison perde o braço esquerdo, em consequência de ferimentos. A mutilação não lhe permitirá permanecer ao comando da sua divisão, nas campanhas em curso na Suíça, acabando por cumprir lugares secundários nas operações de guerra. Será então que, em fins de 1807 e já ao comando de nova divisão, Loison tem a rota traçada rumo a Portugal. Ordenado o avanço das tropas napoleónicas sobre a Península Ibérica, a divisão de Loison integra a força militar de Junot e, a 30 de Dezembro, ambos chegam a Lisboa.

Começa aqui um percurso de má memória que, naquela expressão popular, imortalizaria a inimizade que o povo português consagrou a este general de França. O ano de 1808 foi pródigo em focos de resistência, um pouco por todo o país. A ocupação francesa e os sucessivos vexames por esta causada, instigou aos mais variados levantamentos populares, cuja intensidade propiciou não só a desarticulação das forças francesas, como a entrada de forças britânicas em nosso auxílio. Foi neste contexto que Loison passou a figura proeminente na repressão destas revoltas. Após falhar o intento de dissipar a grande revolta de 19 de Junho, no Porto, retorna à capital, onde assumirá a defesa e o controlo dos arredores da cidade, não sem antes saquear todas as localidades por onde passara, Guarda, Alpedrinha, Sarzelas, etc. Conta-se que nessa revolta do Porto, tal era o ódio a Loison que, sendo confundido com este, o general Foy apenas se livrou de um linchamento popular quando, ao ser perseguido, se lembrou de agitar os dois braços no ar, para que vissem todos que não era ele o “Maneta”.



Assumindo o cargo de chefe da “polícia política” francesa em Lisboa, Loison espalha o terror entre as populações lisboetas e arredores. Sucedem-se as prisões, as execuções, perseguições, roubos, as tropas de Loison dispunham livremente de vilas e cidades, bem como das suas gentes. A má fama do “Maneta”, como a população o designava, tornava-o alvo do ódio e do medo de um país que se via espoliado da sua liberdade e dos seus haveres. Igrejas e conventos, palácios e lojas, tudo é saqueado pelas tropas de Napoleão. Já antes, em Fevereiro desse ano, se havia decretado o envio para a capital de todo o ouro e prata das igrejas e confrarias do país, para que fosse convertido em moeda, a ser enviada para Paris como tributo de guerra. O general Loison, ou o “Maneta”, era o grande protagonista destas acções de espoliação, a par da cruel repressão exercida sobre os resistentes. Évora (5 mil civis mortos), Estremoz, Elvas, Arronches ou Portalegre foram outros locais de onde o “Maneta” levou prata e ouro, deixando os escombros do fogo e dos mortos. Mais a Norte, Leiria, Tomar e Nazaré, não tiveram sorte melhor.

Na sequência dos avanços luso-britânicos, Loison retira para Espanha. Ainda por duas vezes integrará forças de invasão a Portugal, mas nem de perto causa os danos da estadia anterior. Depois de ainda integrar algumas batalhas, já fora da Península Ibérica, só em 1814 regressaria de vez a França, onde é feito conde e Cavaleiro de S. Luís. Retirado do exército, parte para Liége, onde passará os seus últimos 2 anos. A 30 de Dezembro de 1816, morre Louis-Henri Loison, aos 45 anos de idade e sem tirar grande proveito dos 20 anos de saques e pilhagens, a que dedicara o seu percurso militar. Entre nós, ficaria para a posteridade a memória do general “Maneta”, o vilão francês sem escrúpulos, para o qual tudo ia e tudo se perdia. Daí que, ainda hoje, “vá tudo prò Maneta”, na gíria nacional está claro.

sexta-feira, dezembro 23, 2005

- Acreditar no Pai Natal -



Em criança deparava-me com aquele complexo dilema de saber qual o verdadeiro responsável pelos presentes que tinha à minha espera nas manhãs de 25 de Dezembro...

Em casa dos meus pais era o “Pai Natal” que lá os ía deixar. Como não tinha lareira, imaginava-o a entrar pela janela da sala, qual fantasma a atravessar os vidros... Mas na casa dos meus avós era o “Menino Jesus” que, nunca percebia bem como nem porquê, os fazia lá chegar. Anos mais tarde, e já ultrapassado o trauma de saber que eram afinal os meus pais os verdadeiros responsáveis (espreitei pela fechadura da sala), acabei por interiorizar a ideia de que o tal “Pai Natal” não passava de um burlão ao serviço de um consumismo desenfreado. Daí que o “Menino Jesus” me pareceu um motivo bem mais humano e tradicionalmente correcto para a troca de presentes. A idade tem destas coisas e com o passar do tempo começamos a querer compreender melhor as coisas. E sabem o que descobri? Ainda acredito no “Pai Natal”!

Parece-me bem mais ajustado o hábito espanhol de trocar presentes no Dia de Reis, ou não se pretendesse assinalar o dia em que os “Reis Magos” terão feito as suas ofertas a Jesus Cristo, como celebração do Seu nascimento. Contudo, nós, como tantos outros povos do mundo cristão, fazemo-lo na noite de Natal e o motivo parece prender-se com uma combinação de duas celebrações, o nascimento de Jesus e a morte de um tal S. Nicolau. Recuemos...

Nos fins do séc. III, o Império Romano dominava ainda uma grande parte do continente europeu, bem como toda a área mediterrânica. É, pois, na região romana da Lícia (actual Turquia), que na cidade portuária de Patara, no ano de 280 d.C., nasce Nicolau (significa “pessoa virtuosa”). Filho de uma família abastada de cristãos devotos, ainda muito jovem Nicolau dá inicio ao seu percurso de santidade. Conta-se que em Pátara, um pobre homem, pai de três filhas, na impossibilidade de lhes proporcionar um dote de casamento capaz de cumprir a tradição da época, toma a resolução de as encaminhar para a prostituição. Sabendo o que se perspectivava para as três irmãs, Nicolau decide interferir cobrindo a falta daquela família. A lenda conta-nos que, um dia, o jovem Nicolau terá subido ao telhado desse lar e, ao abrigo da noite, fez descer pela chaminé um saco cheio de moedas de ouro. Por mais duas vezes terá repetido essa acção, sempre que se aproximava a idade de casamento das jovens, assegurando que todas três se pudessem casar. Nasce assim a tradição da descida dos presentes pela chaminé.

Nicolau perde os pais muito cedo, aprofundando então a sua Fé. É a conselho de um tio que decide visitar a terra santa, Jerusalém. Nessa viagem dá um passo mais na consagração da sua santidade. Conta-se que, indo por mar, uma imensa tempestade ameaçava perder a embarcação com todos a bordo. Terá sucedido que, em começando Nicolau a rezar fervorosamente, o Céu se acalmara miraculosamente. O acontecimento foi digno de registo, concorrendo para que fosse, mais tarde, feito padroeiro de marinheiros e pescadores. Essa viagem, que passou ainda pelo Egipto, terá sido uma peregrinação religiosa e cultural para Nicolau, amadurecendo-lhe a devoção e aprofundando conhecimentos. Regressado a casa traz um novo projecto de vida. Doando toda a sua abundante riqueza aos mais desfavorecidos, com especial atenção às crianças, muda-se para a cidade de Mira. Aí cultivará a sua Fé como homem religioso, adquirindo um carisma que o levaria a Bispo dessa cidade. No novo cargo dá continuidade à sua obra junto dos mais pobres, orando pelos homens e protegendo as crianças.

Falecerá a 6 de Dezembro de 342, deixando uma vasta obra de caridade, semente de um verdadeiro culto. As lendas atribuídas à sua vida e obra espalharam-se por toda a Europa na imagem de um generoso distribuidor de bens e de presentes, tornando-se num dos santos mais populares da Cristandade, ao qual se atribuíam muitos milagres. É padroeiro da Rússia, da Grécia, dos marinheiros e das crianças. Instituído o seu dia de celebração, era a 6 de Dezembro que se trocavam os presentes em sua honra. Com o advento da Reforma, no séc. XVI, o culto aos santos é denegrido pelos Protestantes, especialmente no Norte europeu. Passa-se então a tradição da troca de presentes para o dia de Natal, procurando-se centrar o culto religioso apenas em Cristo. Anos depois, na Contra-Reforma, a recuperação do culto a este santo tão popular, transfere a sua celebração também para o dia de Natal.

Face à escassa documentação da vida do santo, em 1969, o Papa Paulo VI retira a festa de S. Nicolau do Calendário Oficial Romano, contudo, o culto permanece por todo o mundo cristão e em todos os lares, ao ponto de partilhar, quando não centralizando em si, o próprio dia do nascimento de Jesus, a festa da Família.

O “Pai Natal” é pois o S. Nicolau de origem mediterrânica e bispo de Mira, que, em 1822, um poema do americano Clement More imaginou como um velhinho de barbas brancas, num trenó puxado por renas e que desce pela chaminé com presentes. Por fim, a publicidade de Inverno da marca “Coca Cola” retoma esta imagem em 1931, vestindo-o com as suas cores e imortalizando S. Nicolau como um velho gordinho, de vermelho, botas altas e saco às costas cheio de presentes para os meninos bem comportados.

Muito para além desta imagem fantasiosa, bem como dos milhentos sósias todos os anos espalhados pelos centros comerciais, o “Pai Natal” tem um significado bem diferente de um sino que se toca para comprar… S. Nicolau representa a partilha, o despojamento, a renúncia, a caridade e um desinteressado amor ao próximo. Lembrando a sua obra, não será assim tão difícil voltar-se a “acreditar no Pai Natal”, pois não?

Um Feliz Natal a todos.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

-Pela janela fora –



Já lá vai o tempo em que, por aqui, se resolviam os problemas atirando-os janela abaixo… Foi um tempo em que os portugueses não se lamentavam tanto como agora pois agiam por mãos próprias. Contra condes e marqueses, reis e rainhas, padres e papas, temos um Passado repleto de indignação e de iniciativa. Um espírito que se perde neste democrático marasmo de abstencionismo e lamechice.

Pois foi “pela janela fora”, que no 1º de Dezembro de 1640 se deu inicio à resolução de um problema com uns já fartos 60 anos de idade. Caía então de um dos balcões do antigo Palácio da Ribeira, um Secretário de Estado português ao serviço de um rei estrangeiro. Mas, como de costume…recuemos:

Posto o desaire em Alcácer Quibir (1578), desaparecido el-Rei D. Sebastião e terminado o curto reinado (2 anos) do Cardeal D. Henrique, chega-se a um impasse em que, de entre os netos de D. Manuel, se esperava o novo rei. Filipe toma a dianteira, reivindicando para si o trono de Portugal. Acontece que Filipe era já o 2º de seu nome na linha de reis castelhanos. Filho de Carlos V, Filipe herdara e liderava agora um império de força extrema, rico, bem organizado e em expansão, o que num Portugal derrotado e sem rumo, acaba por dividir a sociedade entre defensores e opositores a uma união com Espanha. Filipe insiste e dispõe-se mesmo a reivindicar o trono pela via militar, pelo que logo se procura resolver a questão diplomaticamente. Convocadas as Cortes para Tomar, em 1580 decide-se a favor de Filipe, o primeiro de Portugal, o 2º de Espanha. Aí, o príncipe compromete-se com uma série de premissas que visavam garantir uma administração independente de Portugal, mantendo-se o reino intacto nas suas instituições e identidade. Posto isto, Portugal sente imediatamente um considerável alívio económico, beneficiando do bem estar financeiro espanhol, proliferando o comércio e, consequentemente a classe média.

A partir de cerca de 1630, tudo isto se inverte. Já com Filipe IV de Espanha no poder, a frente de guerra aberta com os franceses pende para o lado destes, a Espanha entra em crise e logo, Portugal também. É então que o descontentamento face à ocupação estrangeira se evidencia. Os compromissos feitos em Tomar vinham sendo insistentemente atropelados, verificando-se o aumento de impostos, a ocupação de cargos de prestígio em Portugal por elementos espanhóis, etc. Por outro lado, Madrid ordena o encerramento dos portos portugueses aos seus inimigos, que, por sua vez, acabam por atacar o Nordeste brasileiro. Isto leva à derrocada do comércio português, encarecendo produtos, diminuindo o poder de compra, fragilizando uma classe média habituada a lucrar. O aumento da carga fiscal provoca a rebelião popular, que sai à rua um pouco por todo o país, embora com especial incidência em Évora.

Alguns meses antes da data que agora se celebra, um grupo crescente de algumas dezenas de nobres dissimula uma causa comum, a restauração da independência. Eram essencialmente jovens, uma vez que a fidalguia de mais idade se encontrava destacada em Madrid ou recatadamente à espera do resultado da conjura. Um plano é urdido secretamente na última noite de Novembro. No pátio posterior do “Palácio do Almada” (actual Palácio da Independência) juntam-se os cabecilhas do movimento, a coberto do colégio jesuíta de Stº Antão por onde entravam. É então que na manhã de 1 de Dezembro, pelas 9 horas, cerca de 40 homens neutralizam a guarda do palácio real, sobem até aos aposentos da vice-rainha, a Duquesa de Mântua, obrigando-a a assinar uma ordem de rendição pacífica aos regimentos estacionados no castelo de S. Jorge e nas fortalezas ribeirinhas. Entretanto dirigem-se até outros aposentos, os do Secretário de Estado Miguel de Vasconcelos, um português que assumia funções enquanto representante de Castela no governo do reino. Era um burocrata, elevado a um posto para o qual não havia sido educado, insuflado de uma soberba e desdém que cedo lhe granjearam muitos inimigos entre as mais velhas famílias da nobreza lusa. Assim, neste dia de decisões nem a nacionalidade lhe valeu a vida, e tendo ainda procurado esconder-se dentro de um seu armário de documentos, traiu-se por sons que provocou, logo sendo descoberto, alvejado a tiro e, diz-se que ainda vivo, atirado janela fora junto com alguma prataria e outras riquezas que aí conservava. O povo exultante acorreu à oferta e parece que pouco restou do infeliz.

É então aclamado rei D. João, Duque de Bragança, legítimo herdeiro do trono por ambas as linhas parentais, de origem real. Ao princípio ainda relutante em assumir a liderança do movimento, o Duque acabou por anuir à insistência de sua esposa, Dª Luísa de Gusmão, à qual se atribui a célebre frase: “Antes rainha uma hora que duquesa toda a vida”. Pois, por morte de seu marido, chegou mesmo a reger o país na menoridade do filho Afonso, ficando como uma das mais persistentes e tenazes rainhas de Portugal.

É certo que só em 1668 se encerraria a guerra causada pela reacção castelhana, contudo, o resultado de uma decisão lícita e corajosa, foi o saldo inestimável que é um pedaço de terra, onde livremente se criem gerações e transmitam os valores de uma memória comum. Creio ser essa a ambição que leva ainda, alguns de nós, a celebrar este dia, 365 anos depois.