Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Artigo de Opinião: Recordando Oliveira Marques


Quem são os “alfacinhas”?

Faleceu no passado dia 23 de Janeiro, aos 73 anos, o professor António de Oliveira Marques. Historiador de renome, foi considerado um dos maiores especialistas na investigação da Idade Média, área na qual se tornou uma referência incontornável, pela obra construída, pela relação de proximidade que sempre manteve com os seus discípulos. Foi responsável pela criação de gerações de investigadores, inspirados no seu rigor, no seu exemplo de persistência e imparcialidade.

Integrando uma geração de profissionais durante a vigência do Estado Novo, Oliveira Marques soube destacar-se do excessivo conservadorismo que então emanava dos círculos universitários, alinhando com os parâmetros evolutivos da historiografia europeia. Foi, por isso, acolhido como um exemplo e uma referência pelas novas gerações de historiadores. Acabaria, contudo, por ser afastado do ensino, quando resolve tomar parte numa greve estudantil contra o regime, em 1962. Vê-se então na necessidade de sair do país, em busca de condições para prosseguir o seu trabalho. Em 1965 começa a leccionar nos Estados Unidos da América, passando por várias universidades como conferencista e mesmo como catedrático. Só em 1970 regressaria a Portugal, no entanto, apenas retoma o ensino universitário após a revolução de 1974. É então que se torna numa presença constante, quer como director da Biblioteca Nacional de Lisboa, quer depois no meio académico, ao qual retorna enquanto professor catedrático da recém fundada Universidade Nova de Lisboa. Aí, para além de prosseguir os seus estudos enquanto eminente medievalista, dedica-se agora ao estudo da contemporaneidade da História nacional, algo que o Estado Novo não apoiava e cujo ensino proibia. Enquanto presidente da comissão instaladora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), parte da Universidade Nova de Lisboa, abrirá caminho ao seu departamento de História, junto com investigadores como José Mattoso, Maria José Ferro Tavares ou Iria Gonçalves.

Foi na FCSH que tive o meu primeiro e único encontro com o mítico professor, que, face ao seu falecimento, gostaria de aqui recordar. Por meados de 2000, uns amigos perguntavam-me intrigados, já que era lisboeta e andava a estudar História, qual era a origem da expressão “alfacinha”. Pois eu não fazia a mais pequena ideia… A partir de “alface” todas as teorias eram possíveis. Talvez comessem muita alface e pronto! Numa aula de História de Portugal Medieval, confrontei o professor da cadeira com o enigma. Não me soube responder, no entanto, indicou-me quem talvez o soubesse: o professor Oliveira Marques.

Dirigi-me nesse mesmo dia até ao primeiro andar do Bloco1 (a faculdade, erigida num antigo quartel, é dividida em blocos, sendo este o das antigas cavalariças), onde o professor tinha o seu gabinete. Quando finalmente avistei a porta certa, esta abre-se, e de lá sai um homem altíssimo, algo curvado, com um sobretudo negro e todo abotoado que lhe cobre o corpo quase até aos pés. É um homem idoso, de cabelo branco, com bigode curto e aparado. Acabava de trancar o gabinete quando se virou para a saída. Tinha um olhar cansado e uma expressão algo combalida. Quando me viu ali, especado, perguntou delicadamente – Deseja alguma coisa? – Respondi que sim, que tinha uma dúvida que talvez ele pudesse esclarecer. Sem me deixar dizer mais, o professor esboçou um sorriso e disse – Venha, venha – Procurou novamente as chaves, abriu a porta do gabinete, acendeu as luzes – Tenha a bondade – convidou-me a entrar. Depois de fechar a porta ficou em pé diante de mim e agora sim – Então diga lá. O relato pormenorizado que faço, é para que se recorde o rigor na diligência com que este homem encarava até a menos prometedora conversa, ao fim de um dia de cansaço. A delicadeza no trato é, aliás, uma das características que mais oiço serem-lhe atribuídas.

Num breve diálogo de cerca de 10 minutos, o professor não me pôde dar certezas. Mencionou, contudo, um antigo hábito da Lisboa burguesa de fins do séc. XIX. Em pleno Romantismo, as famílias da classe média lisboeta tinham o costume, quase compulsivo, de, nas tardes solarengas de Domingo, se reunirem em almoçaradas pelas inúmeras hortas que povoavam os arredores da capital. Aí, acompanhando o tradicional peixe frito, parece que se consumiam quantidades absurdas de salada de alface. Ora, este hábito tornava-se tão peculiar quanto pitoresco, aos olhos de quem vinha de fora da cidade. Na verdade, o consumo da alface era então pouco difundido pelo resto do país, pelo que a moda foi algo estranhada e até caricaturada.

O professor chamou-me a atenção para a obra de Almeida Garret, Viagens na Minha Terra. Aí, o autor faz uma referência à tal alcunha lisboeta, que aponta para esse sentido, de certa forma pejorativo, do nome “alfacinha”. Com efeito, a determinada altura do capítulo VII, quando Garret vai descrevendo ao leitor as suas viagens por uma Europa luxuosa, acaba esquecendo-a por completo, quando recorda a sua chegada ao bem português “café do Cartaxo”. Aí, passa a dirigir-se aos leitores lisboetas, acusando o seu sedentarismo, a falta de curiosidade pelo que está para além da capital. Vamos ouvi-lo:

Fazem ideia do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, não saem, se não vêem mundo esta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o teatro de S. Carlos, como hão de alargar a esfera de seus conhecimentos, desenvolver o espírito, chegar à altura do século? Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos à dama nova, ide que não prestais para nada, meus queridos lisboetas… Viajar?... Qual viajar! Até a Cova da Piedade, quando muito, em dia que lá haja cavalinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare. Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.”

O professor, disfarçando o seu cansaço e sempre sem se mostrar enfadado, não arredou pé enquanto eu não dei a conversa por terminada. Guardarei na memória essa educação, afabilidade e delicadeza extremos, que tanto rareia entre os nossos homens de saber profundo. Bem-haja e Deus o tenha.