Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, junho 30, 2006

- Lembrar a Rainha Santa -



Neste 4 de Julho, a Igreja assinalará o dia em que faleceu Dª Isabel de Aragão, a Rainha Santa. Nenhuma outra é tão lembrada e acarinhada pelo povo, entre o qual se completou como pessoa e cumpriu enquanto rainha. Vamos recorda-la pois, 670 anos decorridos da sua morte.

“Rainha Santa Isabel” foi o nome escolhido para baptizar o novo hospital de Torres Novas, à semelhança de inúmeros outros casos no país. Uma homenagem que se quis prestar a esse vulto da História, na qual se destacou pelo exemplo de atenção, cuidado e amor aos demais, digamos que, um pouco à semelhança do que se espera de um hospital. Isabel, (que significa “promessa de Deus”) filha do rei de Aragão, D. Pedro III, nasce no ano de 1271. Descendente dos imperadores germânicos, por via materna, recebera o seu nome por deferência à sua tia-avó Isabel da Hungria, já então considerada santa pelo exemplo de caridade e abnegação que revelara ao longo da vida. Entregue ao seu tio Tiago I, fervoroso devoto, Isabel de Aragão será educada no rigor da oração aliada à auto-disciplina, revelando desde cedo um especial empenho e vocação para a Fé, na senda do exemplo da tia húngara.

Contava apenas 12 anos quando recebeu o pedido de casamento da parte de 3 príncipes, entre eles, o nosso D. Dinis. Ao português os reis de Aragão haveriam de consagrar a mão da filha, dada a proximidade e as boas relações desejadas entre os reinos. Casados por procuração a 11 de Fevereiro de 1282, apenas 4 meses depois ela atravessaria a fronteira, por Trancoso, afim de celebrar o acontecimento. Trancoso seria então incluído no dote oferecido por D. Dinis à rainha, assinalando o seu local de entrada no reino. Se se previa um percurso de santidade para Isabel, a vivência junto do rei de Portugal haveria de constituir plena oportunidade para essa consagração. Na verdade, D. Dinis cedo se revela um homem violento, infiel e de má vontade no seu casamento. É conhecida a numerosa prole desse rei, que, mantendo diversas relações extra-conjugais, acabava produzindo uma descendência ilícita que trazia para a Corte. Aqui se destaca o comportamento da rainha, que, apesar de humilhada, terá mantido o respeito e a bondade para com D. Dinis, acolhendo, amando e educando os filhos ilegítimos do marido, como se seus fossem.



À luz deste comportamento o rei oscilava o seu, assim, ora numa profunda admiração, ora dando atenção a intrigas na Corte, ia respeitando ou mal tratando Dª Isabel. Ainda assim, D. Dinis respeitava a vivência devota da rainha, que se desdobrava em desvelos entre a orientação da residência e da família real e a atenção aos necessitados. A leitura e a meditação espiritual alternava com a assistência à família, mas, sobretudo, com as obras de caridade que produzia com outras damas da Corte. Confeccionando roupas para pobres, visitando enfermos e idosos, patrocinando a construção de albergues ou um hospital para os mais necessitados, escolas, um lar para meretrizes convertidas, outro para órfãos, para além de conventos e de todo um trabalho junto das ordens religiosas.

Em poucas palavras se poderá contar o sobejamente conhecido “milagre das rosas”, a ela atribuído. Consta que uma das suas obras de caridade consistia na distribuição assídua de pão pelos mais pobres. Sendo o ano de 1333 um ano de carência e maior fome, ter-se-á o rei oposto a este tipo de prática, que constituiria grande despesa para a sua Casa. Isabel terá então vendido algumas das suas jóias para poder comprar trigo, que lhe permitisse manter o hábito. Ora, num desses momentos de distribuição o rei terá aparecido, indignado, reagindo a rainha com a ocultação dos pães que trazia consigo no regaço, procurando evitar a censura do marido. Percebendo o seu gesto apressado, D. Dinis terá perguntado – Que tendes em vosso regaço senhora? – Ao que Isabel teria respondido – São rosas senhor…! – Rosas em Janeiro?! Deixai que as veja então! – E soltando as vestes, eram de facto rosas que caíam ao chão. Trata-se de um conto popular que perdurou sempre, mas que alguns apontam ter sido uma colagem de um episódio ocorrido com Isabel da Hungria, sua tia e não com a nossa rainha.

Seja como for, não precisaria de alguma vez ter transformado pão em rosas para que recebesse justamente uma tal admiração. Isabel de Aragão teve uma preponderância decisiva em vários momentos de luta eminente no reino. Dera dois filhos a D. Dinis, Constância, futura rainha de Castela, e Afonso, futuro rei de Portugal. Será este último, que, movido pelo ciúme que lhe causava a preferência que D. Dinis dedicava a um dos seus filhos bastardos (D. Afonso Sanches), moveria uma campanha militar contra o rei, pretendendo que este abdicasse em si o trono. Isabel intervém, procura demover o filho de tais intentos e concilia-lo com o pai. Ainda assim, chega a ser acusada de se unir ao infante, o que lhe vale a desconfiança do marido e a ordem de expulsão para a província. Acabando por lhe ser reconhecida a inocência, Isabel retorna e consegue então amenizar um pouco as relações entre o marido e o filho. Consta que, estando ambos os exércitos preparados para combater, na zona de Alvalade, Lisboa, a rainha ter-se-á aproximado de ambos, ajoelhando-se em pleno campo de batalha e rogando para que se entendessem.

À paz assinada no decorrer desse episódio, em 1325, seguiu-se a morte do rei, nesse mesmo ano. Isabel parte então em peregrinação a Santiago, onde, entregando a sua coroa ao arcebispo, obtém permissão para vestir o hábito das clarissas. A partir de então, Isabel recolhe ao convento franciscano de Stª Clara, em Coimbra. Dedicará o seu tempo ao aprofundamento da Fé, lendo sobre os Santos, desenvolvendo outras obras e saindo em peregrinação. Num derradeiro esforço de pacificação, Isabel sai ao encontro do seu filho, que havia declarado guerra ao rei de Castela, seu primo. Conseguindo uma vez mais garantir a paz, Isabel, já com 65 anos, não aguenta as exigências da caminhada e acaba por falecer, a 4 de Julho de 1336. É por vontade sua sepultada em Stª Clara. Em 1516 é beatificada pelo Papa Leão X e cerca de um século depois, Urbano VIII procede à sua canonização.


Túmulo gótico de Dª Isabel de Aragão. Autoria de mestre Pêro, 1336.

quinta-feira, junho 22, 2006

- Sebastião, o “menino-rei” -



A 2 de Janeiro de 1554 morria João de Portugal, o último filho de D. João III e último possível herdeiro da Coroa Portuguesa. Quando Castela já esperava vir dominar Portugal, unindo os dois reinos ibéricos, eis que nasce D. Sebastião, o filho póstumo que vem ao Mundo 18 dias após a morte do príncipe como… o “Desejado”.

A dinastia de Avis, iniciada com D. João I, o tal que venceu os espanhóis em Aljubarrota, foi pautada por gerações de casamentos entre a mesma família, tanto que D. Sebastião apenas tinha 4 dos 8 bisavós que normalmente qualquer pessoa tem, e ainda assim, todos eles descendentes directos do mencionado D. João I. Ora, para além de graves casos de demência, as novas gerações traziam uma fragilidade física que se reflecte, por exemplo, na morte célere dos 8 filhos de D. João III, deixando o reino à beira da união ibérica. Com a morte de João, o último e o mais novo dos filhos do rei de Portugal, resta ao reino a esperança de que o seu filho, Sebastião, cresce lúcido e forte, afim de dar continuidade à dinastia. Pois, é com apenas 3 anos de idade que, face à morte de D. João III, seu avô, o pequeno e frágil príncipe sobe ao trono e sucede na linha dos reis de Portugal.



Enquanto foi menor, a regência foi assegurada pela sua avó, a viúva de D. João III, e depois pelo tio-avô, o Cardeal D. Henrique, sendo que no decorrer desses 11 anos se continua o processo de expansão a Sul e Oriente. O príncipe é educado em austeridade pelos jesuítas, crescendo com grande fervor religioso, contudo, rodeado de todas as atenções e mordomias, o que lhe desenvolveria um espírito teimoso e caprichoso, aliado a uma forte dose do misticismo e até do messianismo que lhe incutia todo o reino, em relação à sua pessoa e à sua missão enquanto rei. Sebastião acreditava que lhe competia cumprir uma nova grande cruzada contra os muçulmanos do Norte de África, restituindo a glória à sua dinastia. Vê ainda nesse empreendimento uma oportunidade para o comércio, bem como uma área de intervenção para a nobreza do reino, ávida por novos combates e glórias.

Não é difícil imaginar as pressões e tentativas de influência, vindas de todos os quadrantes da sociedade portuguesa, a que o jovem príncipe terá sido continuamente exposto. Assim, ao tomar para si o controle do reino, aos 14 anos, D. Sebastião começa imediatamente a planear a sua campanha em África. É curioso observar que o então rei de Espanha, D. Filipe II (futuro I de Portugal) impõe o adiamento do casamento de sua filha com o príncipe, para depois da campanha. Ora, a oportunidade certa para o avanço desta campanha, surge com a instabilidade ocorrida entre os muçulmanos. Al-Malik, expulsa o seu sobrinho Moulay Mohamed de Marrocos em 1576, tomando-lhe o poder. O líder deposto vem então pedir o auxílio a D. Sebastião para retomar o poder (depois de tal lhe ser negado pelo rei de Espanha, que já havia feito pacto com Al-Malik), prometendo a praça de Arzila em troca, ao que o jovem rei acede imediatamente.

Começa então a tentativa de reunir tropas para a campanha, vindo mercenários da Alemanha, da Flandres e Itália com armas e munições, juntar-se aos lavradores e mesteirais portugueses arregimentados à força e a alguns fidalgos prontos a comandar as hostes. Em suma, constituiu-se um exército de cerca de 15 mil homens, indisciplinado, inexperiente, mal organizado e pouco motivado para a batalha. Com eles parte de Lisboa D. Sebastião, no dia 25 de Junho de 1578, a data que agora se assinala, rumo a Alcácer Quibir. Parando em Tanger, onde o aguardava Moulay Mohamed, seu aliado, desembarca em Arzila, de onde pretende seguir a pé até ao local da batalha. O jovem não dá ouvidos aos militares mais experimentados, que o aconselham a que siga nos navios, paralelamente à costa, não só para poupar o exército mas também para poder ter forma segura de poder retirar, em caso de derrota eminente. Chegando a Alcácer Quibir, depois de muito caminhar sob calor intenso, cansado e com fome, o exército português encontra o de Al-Malik, muito superior em número e extremamente motivado. É a 4 de Agosto que se dá a refrega. Envolvido em meia-lua, face à desproporção numérica, o exército português é então dizimado, terminando tudo rapidamente com inúmeras mortes e aprisionados os sobreviventes. Esta batalha, conhecida pela “Batalha dos Três Reis”, ficou famosa pelo facto de nela terem perecido os 3 líderes envolvidos. Moulay Mohamed morre afogado na ribeira Mocazim, Al-Malik morre subitamente no início da batalha e D. Sebastião terá sido morto em combate, desaparecendo.


Quadro alusivo à batalha.

É aqui que começa aquele que se quis como um dos maiores mistérios da História de Portugal. Sebastião foi morto? Sobreviveu e fugiu, retirando-se para um mosteiro até ao fim da vida? O “Sebastianismo”, como movimento misticista, começou aí, face à ocupação castelhana que se seguiu ao desaire de Alcácer Quibir. Os portugueses foram alimentando a esperança de ver a qualquer momento ressurgir o jovem rei, libertando o país do domínio espanhol e restaurando a dinastia de Avis. Essa crença manteve-se e generalizou-se nas palavras do poeta Bandarra, partilhada pelo próprio Padre António Vieira e, através dos tempos, chegando a Fernando Pessoa, já sob a forma de um patriotismo místico e messiânico, com a sua “Mensagem”.

Certo, é que existem documentos no Vaticano onde os papas Clemente VIII e Paulo V atestam que, diante de si, se encontrara o verdadeiro D. Sebastião, reivindicando a sua Coroa, sentenciando eles que D. Filipe III de Espanha (o então II de Portugal) lhe devolvesse o reino, o que este nunca quis cumprir, pedindo sucessivas revisões do processo. É também certo que, não tendo nenhum soldado ou nobre português visto ou resgatado o corpo do rei, acaba por ser o próprio rei de Espanha, que agora reivindicava o trono de Portugal para si, a apresentar um corpo vindo não se sabe de onde, que alegava ser o de Sebastião, afim de ser trasladado para os Jerónimos, em Belém. Há quem sugira que Filipe II, contrariado com o inesperado nascimento de Sebastião, quando se preparava para ser coroado rei de Portugal, lhe prepara uma armadilha que o demoveria do trono para sempre. Há quem descreia da sua morte. Há ainda quem o aguarde…

sábado, junho 17, 2006

- Santo António de Lisboa ou Pádua? -



"A paciência é o baluarte da alma, ela a fortifica e defende de toda perturbação." Eis uma frase atribuída ao Santo que agora se celebra. Vamos procurar rever o percurso e obra do homem que a Igreja mais depressa santificou.


Fernando Martins de Bulhões, é o nome que recebe à nascença, pensa-se que em Agosto que 1195. A esse tempo vivia-se o ímpeto guerreiro das cruzadas, vindo a aristocracia de toda a Europa com o fim de combater os muçulmanos a Sul. Estes, por sua vez, proclamavam a Jihad contra os infiéis cristãos, medindo forças também na Península Ibérica, com os reis de Portugal e Castela. É neste contexto que nasce o pequeno Fernando, numa Lisboa ainda com pouco tempo de domínio cristão, mas com uma estrutura clerical em rápido desenvolvimento. Nascendo numa família de ascendência nobre, Fernando vive comodamente no bairro da Sé, com os pais e uma irmã, Maria, até aos 15 anos, durante os quais frequenta a escola da Sé. É, por isso, cedo que decide prosseguir os estudos no meio religioso, integrando os Cónegos Regrantes de Stº Agostinho, no Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa. Em 1211 e contando cerca de 16 anos, Fernando ruma a Coimbra, ao mosteiro de Stª Cruz, em busca da maior biblioteca eclesiástica então existente no país. Completamente absorvido na leitura, entrega-se ao estudo das muitas obras que lê e conhece como poucos. Assim, 8 anos depois, Fernando era ordenado sacerdote.


Mosteiro de Stª Cruz de Coimbra.

Contemporâneo de Fernando Martins de Bulhões, outro religioso teria abandonado a casa abastada dos pais para se dedicar à meditação e à vivência monacal. Falamos de Francisco de Assis, um puritano que busca no exemplo de Cristo e dos primitivos cristãos, um ideal de pobreza e abnegação esquecido, promovendo a reaproximação da Natureza e dos homens. Esta nova reflexão sobre a vivência dos Evangelhos acaba por rapidamente atrair novos seguidores, que se multiplicam e partem rumo a outros países. Ora, foi já como sacerdote que Fernando toma pela primeira vez contacto com membros desta comunidade. Recebendo um dia alguns destes frades no mosteiro de Coimbra, agrada-se do seu modo simples e alegre de viver a Fé. Contudo, poucos meses depois desta visita, chegam a Coimbra as relíquias de cinco franciscanos, degolados nesse mesmo ano de 1220, no decorrer da sua missão em Marrocos. Fernando impressiona-se imensamente perante os cadáveres e com o martírio desses homens simples, logo resolvendo tomar o hábito franciscano.


Stº António recebendo os franciscanos.

Contando então cerca de 25 anos, Fernando integra esta Ordem, e, alterando o seu nome de baptismo para António, muda-se para o ermitério de Stº Antão dos Olivais, perto de Coimbra. Numa completa entrega ao seu espírito de missão, Frei António pede para partir quanto antes rumo a Marrocos. Pretende continuar a missão daqueles mártires que havia observado, na evangelização dos muçulmanos. Contudo, o projecto não lhe corre de feição e, chegando a Marrocos, em 1221, logo adoece com gravidade e vê-se obrigado a regressar a Portugal. Mas nem a viagem de regresso corre como desejado e, sofrendo uma violenta tempestade, a embarcação é desviada para o interior do Mediterrâneo, acabando por desembarcar na Sicília. Aí, Frei António é recebido no seio da comunidade franciscana, acabando mesmo por participar no “Capítulo das Esteiras”, uma grande reunião com cerca de 5 mil frades, que então ocorria em Assis, e tendo oportunidade de conhecer o próprio fundador da ordem, S. Francisco de Assis. Findo o encontro, Frei António passa então para o eremitério de Monte Paolo, onde permanece ao longo de 15 meses, empregando o seu tempo na meditação e nos trabalhos domésticos da comunidade. É desta forma que toda a sua sabedoria permanece desconhecida dos monges, que assinalam, contudo, a humildade constante daquele estrangeiro.


Convento de S. Francisco, em Assis.

Em 1222, António participa numa cerimónia de ordenação de frades, na cidade de Forli, sendo convidado para produzir a conferência espiritual. Aí, a sua dicção e o domínio das Escrituras que demonstrou ao discursar foi tal que pasmou toda a audiência. Não estavam preparados para que daquele monge discreto e modesto saísse tamanho dom para a pregação. Assim, ao longo dos 3 anos seguintes, Frei António percorrerá a Itália como pregador e mestre de Teologia, chegando a ser convocado pelo próprio Francisco de Assis para ensinar em Bolonha, Montpelier ou Toulouse. Com a morte de S. Francisco, em 1226, Frei António muda-se para a cidade italiana de Pádua, onde passa a produzir os sermões dominicais. Como resultado, a afluência às suas missas aumenta, mas aumenta de tal maneira que, em breve, terá de discursar em campo aberto, pois que nenhum templo comportava o imenso público que o procurava ouvir. A sua celebridade aumenta ao ponto de ser santificado, ainda em vida, pelo povo, que disputava por um simples pedaço do seu hábito como relíquia. São-lhe encomendados sermões pelo bispo de Óstia, o futuro Papa Alexandre IV, para serem lidos nas principais festas religiosas, documentos que escreve em 1229 e que constituem as principais fontes do Santo que hoje nos chegam.


Fachada da Igreja de Stº António, em Pádua.

Em 1231 deu-se a consagração da sua santidade, quando, ao fazer o discurso da Quaresma, em Pádua, é assistido por uma verdadeira e crescente multidão, facto que tem sido apontado como uma espécie de segunda fundação cristã da cidade face ao número de conversões que produziu. Contudo, é também nesse ano, em inícios de Junho (13 de Junho), que o frade adoece e sucumbe nas imediações de Pádua, proclamando-se a “morte do Santo” pela cidade. Certo, é que foi canonizado antes que se completasse um ano da sua morte, a 30 de Maio de 1232, o que nem com S. Francisco de Assis acontecera. O sepulcro, conforme sua vontade, foi erigido em Pádua, onde ao longo do tempo foi sendo alvo de grande oração e peregrinação, na Igreja de Santo António. Por outro lado, a Igreja de Stº António de Lisboa, foi erguida sobre a sua casa, também alvo de intensa peregrinação. O dia 13 de Junho é, pois, a data de celebração do santo em Lisboa e Pádua, as cidades que o viram nascer e morrer.

sexta-feira, junho 09, 2006

- Camões, poeta das 7 partidas -



O 10 de Junho é apontado como data da morte de Luís Vás de Camões. Não havendo certezas em relação a tal, pior certamente seria não haver data alguma que lhe assinalasse a passagem e a obra. Pois, 426 anos passados, vamos recorda-lo.

Foram muitos os portugueses que, na gesta dos Descobrimentos e do Império Português, partiram mundo fora “em perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”. Desterrados, condenados, aventureiros, uns sem raízes ou amarras no coração, outros comprometidos e sedentos do retorno, milhares de homens circulavam pelas carreiras que rumavam às Índias, à China e múltiplos entrepostos. Por entre peles crestadas pelo sol, ressequidas pelo sal, tufões e tempestades marítimas, batalhas sangrentas em pleno mar alto contra piratas e em rebeliões, todos traziam histórias e memórias que constituiriam o chamado “País de Marinheiros”. Contudo, nem todos saberiam relatar tão bem ou imortalizar de forma tão sublime a epopeia que constituía a vida individual de cada um. Luís Vás de Camões levaria essa vivência ao limite, da mesma maneira que o fará na expressão escrita da sua memória. Recuemos…

Pensa-se que terá nascido em Lisboa, por volta de 1524. Filho de uma família galega, Camões pertence a uma nobreza decadente e pobre que vai mudando de poiso sucessivamente, de Chaves para Coimbra e depois para Lisboa. Perdendo o pai, destacado em Goa, vê a mãe contrair novo casamento afim de obter sustento. Contudo, não deixa de ser educado, sendo acompanhado por jesuítas e dominicanos, após o que, rumando a Coimbra, faz o curso de Artes e frequenta o meio aristocrático. Aí, formará o seu espírito na literatura clássica greco-romana, aprofundando o latim e aprendendo italiano e castelhano. No entanto, o espírito livre e vertiginoso de Camões leva-o a um estilo de vida pouco recomendável. Circula entre vadios e amotinados, meretrizes e boémios, num romantismo depravado que lhe vai entorpecendo a razão. Contudo, pontua e alterna violentamente este abandono de si, com as alegadas famosas paixões platónicas que dedica às damas da Corte, com as quais tem contacto, e onde eleva o amor ao nível do transcendental e imaculado. Ainda assim, é ao seu lado boémio e conflituoso que o jovem dá largas, o que, em 1548, lhe vale um desterro de alguns meses para Constância, no Ribatejo. Aí, valem-lhe alguns amigos que lhe garantem guarida, até que, em 1549, resolve embarcar rumo a Ceuta, entre a milícia do Ultramar. Aí ficará por dois anos, no decorrer dos quais perderá o olho direito, num cerco feito pelos mouros.



Em 1552, já regressado a Lisboa, é no Largo do Rossio que se envolve numa rixa com um funcionário da Cavalariça Real que se digladiava com dois amigos seus. Camões fere gravemente o homem com uma adaga, após o que, é aprisionado. Nove meses depois e apenas por perdão da vítima, Camões é posto em liberdade, contudo, condicionado a partir para a Índia por 3 anos, ao serviço do reino. Em Setembro de 1553 chega a Goa. Aí, Camões participará em expedições militares, por terra e mar, cujo salário tenta aumentar com encomendas de versos e autos que lhe fazem, bem como com a escrita de cartas ditadas por soldados analfabetos, a enviar para o reino. Em 1556, terminado o seu serviço obrigatório, Camões é nomeado provedor-mor em Macau, cabendo-lhe a administração provisória dos bens de falecidos ou desaparecidos e sendo aí que começa a composição dos Lusíadas, numa gruta onde buscava inspiração e escrevia. Face às acusações que entretanto sofre de desvio de valores alheios, é forçado a voltar a Goa para responder judicialmente. É no regresso dessa viagem que naufraga ao largo do Camboja, tendo então por prioridade salvar os manuscritos que já se adensavam e trazia sempre consigo. Nadando até terra firme, consegue salvar o que havia já escrito dos Lusíadas.

Resgatado e levado para Goa, aí ficará à mercê da sua miséria e das dívidas que entretanto contrai, sendo rapidamente aprisionado. Mas sorri-lhe a sorte mais uma vez, ganhando, através da sua escrita, a simpatia e a protecção do Vice-Rei da Índia, o Conde de Redondo, que o liberta e introduz no meio aristocrático e intelectual da região. Em 1567, trava conhecimento com Pêro Barreto, capitão de Moçambique, que lhe oferece emprego e adianta o pagamento da passagem para lá. Mais uma dívida que Camões não salda e que, com outras entretanto contraídas, leva o capitão a prendê-lo. Uma vez solto, está de novo por sua conta, miserável e desamparado, mas prosseguindo a escrita. São os amigos que mais uma vez o acodem e, depois de lhe darem guarida, juntam dinheiro entre si, compram-lhe umas roupas, saldam-lhe as dívidas e ajudam-no a regressar a Portugal, terminando mais uma aventura e onde chega em 1570. Uma vez em Lisboa, Camões vai viver com a sua mãe na Mouraria, onde passa grandes privações. Acalenta como grande objectivo a publicação dos Lusíadas que antes concluíra, e para tal, pede auxílio ao Conde do Vimioso. Por intermédio deste, obtém permissão real para o seu projecto, que, em inícios de 1572 toma corpo e sai em 200 exemplares. Com esta publicação, D. Sebastião atribui-lhe uma pequena tença trienal de 15 mil reis, o que, em orçamento diário, era diminuto e insuficiente para seu sustento.



Em pleno ano de 1579, Lisboa é assolada pela peste e Luís Vás de Camões, já de si debilitado, é facilmente contagiado, passando o resto dos seus dias na cama, no ambiente húmido e infecto dos bairros populares de Lisboa. Numa derradeira carta, endereçada ao capitão D. Francisco de Almeida, faz referência ao desastre de Alcácer Quibir, de 1578, bem como à ruína financeira do reino, prevendo aí o fim da sua independência em favor dos castelhanos.

"Enfim acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela".

O seu próprio funeral é pago por caridade e celebrado junto ao cemitério do Convento de Santana, em Lisboa.


Túmulo de Camões no Mosteiro dos Jerónimos.

quinta-feira, junho 01, 2006

-Quem foi o "Infante Santo"? -


Infante D. Fernando nos painéis de S. Vicente.

Da História das nações não rezam apenas glórias e seus heróis. Momentos há em que as nações se desprestigiam e os heróis falham. Portugal não foi excepção e o Infante D. Henrique também não.

É bastante comum encontrarmos referências a um tal “Infante Santo”. No nome de colégios, estabelecimentos comerciais, hospitais e clínicas, ruas e avenidas, trata-se de uma presença mais ou menos constante, cuja origem, contudo, se perde na sabedoria popular. Tempos houveram em que o seu nome foi elevado bem alto na tradição e no coração do povo. Esse nome era Fernando, filho de rei e santo pelo martírio. Era o irmão mais novo entre a chamada “Ínclita Geração”, ou seja, entre os filhos de D. João I, o Mestre de Avis, com a rainha Dª Filipa de Lencastre, em inícios do séc. XV. Entre tão notáveis irmãos, onde se incluíam o Infante D. Henrique, D. Pedro, duque de Coimbra ou o próprio D. Duarte, futuro rei, o jovem Fernando sobressai pela sua fragilidade, uma saúde débil que lhe vale a atenção e carinho redobrado. Contudo, o infante vinga e fortalecesse-se física e espiritualmente. Na verdade, o jovem cultivava uma forte religiosidade, ocupando-se essencialmente em obras e iniciativas piedosas. Muito cedo o seu pai o faz mestre da Ordem de Avis, procurando compensa-lo pelo facto de ser o último dos filhos e, como tal, aquele que menos beneficiaria em relação aos irmãos. Não obstante, Fernando não se contentava com estas honras, aspirando a maior prestígio e glória, à semelhança dos irmãos e projectando, para isso, partir ao serviço do Papa ou de outros reis europeus.

Estando nestes intentos, o jovem infante acaba, no entanto, por decidir ficar. Tomara conhecimento da mais recente empresa do seu irmão Henrique, que, então, preparava uma expedição ao Norte de África, à conquista de Tânger. Era uma boa oportunidade de se revelar e prestar importantes serviços ao reino, podendo fazê-lo ao lado do irmão e ao serviço de Portugal. Apesar das tentativas do, já então, rei D. Duarte, seu irmão, para o dissuadir de participar, o jovem acabou por levar a melhor, obtendo licença para partir. Assim, sob comando do Infante D. Henrique, a armada parte do porto de Lisboa, a 22 de Agosto de 1437 e levando a bordo o Infante Fernando. Sucede que a expedição não correu como o Infante D. Henrique planeara, e, uma vez em Tânger, as tropas portuguesas foram atacadas por tão grande número que, a alternativa a uma chacina geral seria mesmo a rendição incondicional. Foi o que D. Henrique fez, terminando o confronto.


O Infante D. Henrique.

É aí que se dá um momento singular na História militar portuguesa, embora pelo seu lado menos glorioso. O Infante D. Henrique, mestre da Ordem de Cristo, senhor de inúmeras riquezas, promotor e principal ideólogo da empresa dos Descobrimentos, ao tentar negociar a sua libertação, confronta-se com a exigência, por parte do governador de Tânger, da devolução da importante cidade de Ceuta, anteriormente conquistada pelos portugueses. Ora, não podendo garantir tal devolução sem que o propusesse ao seu rei e irmão, D Duarte, pede ao chefe mouro que o deixe partir e às suas tropas, deixando-lhe, como garantia de sua palavra, o seu próprio irmão, o Infante D. Fernando.

Parte então o Infante D. Henrique, junto com toda a sua armada rumo a Portugal em busca do rei. Mas, em Portugal, a situação foi recebida num misto de indignação e discórdia. Dava ideia que o ultraje de ter um príncipe português nas mãos dos "infiéis", de alguma maneira se minimizaria face à importância estratégica de Ceuta e ao interesse da sua permanência no domínio de Portugal. A verdade é que a situação que D. Henrique trazia às cortes não parecia ter resolução fácil, uma vez que as vozes se dividiam entre a cedência imediata aos mouros e, por outro lado, a recusa de cedência, procurando resgatar o infante de outra maneira. Sucede que, quando se preparava para dar ordem favorável à troca incondicional, D. Duarte morre, deixando o reino sem uma liderança forte, tendo em conta que o herdeiro, D. Afonso, era ainda uma criança. É assim que a situação de indecisão se arrasta indefinidamente. Tenta-se ainda o resgate do infante de forma secreta, contudo, descoberta a acção, tudo piora para D. Fernando.


Tanger

Verificando que Portugal não tinha qualquer intenção de cumprir com a sua parte do acordo, os mouros reflectem a sua fúria no cativo, intensificando, a partir daí, maus-tratos e desconsiderações de todo o tipo sobre Fernando. Encerrado numa torre e posto a ferros, o infante sofre fome, sede, agressões, humilhações de toda a sorte, é escravizado, forçado a pesados trabalhos agrícolas, a limpar cavalos e estrebarias, etc. Ainda assim, e aceitando tudo isto com pacífica resignação, o infante chega a escrever ao seu irmão, o rei D. Duarte, pedindo-lhe que não cedesse, pois que Ceuta era mais importante que a sua vida. Durante seis anos, este homem, filho de rei, permanece ao livre dispor do principal inimigo de Portugal, que lhe faz sentir na carne todas as humilhações e sofrimentos que a medida do ódio muçulmano então comportava. Assim, tendo passado uns derradeiros 15 meses encerrado num cárcere de Fez, isolado, escuro e sem qualquer contacto humano, o infante acaba por morrer, contando apenas 41 anos, a 5 de Junho de 1443. Muitas foram ainda as malfeitorias que os mouros fizeram ao cadáver, embalsamado e exposto em público, pendurado às avessas, nu, à porta da cidade para chacota popular. Seria apenas resgatado largos anos depois, já ao tempo das expedições africanas de D. Afonso V, seu sobrinho.

Para a História e para que conste também, fica a atitude do Infante D. Henrique, que tendo pronto trocado a sua liberdade pelo cativeiro do irmão, foi capaz de viver e permitir que o reino vivesse, apesar do martírio do infante e até que tudo esquecesse. Contudo, e tendo nunca esquecido tal martírio e tamanha abnegação, o povo, esse o elevou a santo e “Infante Santo” ficou, até hoje, 563 anos passados da sua triste morte, que agora se assinala.