Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, maio 12, 2006

- O sonho desfeito -



Vários foram os momentos na História das relações peninsulares, em que Portugal quase foi espanhol e que a Espanha quase foi portuguesa. É certo que “nuestros irmanos” tomaram sempre a dianteira neste aspecto, chegando a remeter-nos a uma dominação de 60 anos, contudo, há um momento na História em que o oposto quase aconteceu, um sonho que el-Rei D. João II acalentava, mas que se desfez um dia, numa cavalgada que tira a vida ao príncipe herdeiro, o jovem Afonso de Portugal. Recuemos...

D. João II, ou “o Príncipe Perfeito”, como ficou conhecido, procede a um reinado extremamente severo e organizado. Um homem de ideias claras, empreendedor e obstinado, que, coroado rei, passa a ajustar o governo do reino ao seu carácter, quando muitos preferiam o contrário. Esses muitos, seriam naturalmente os da nobreza, uma aristocracia habituada a influenciar o rei e o seu governo em favor dos seus interesses individuais. Ora, D. João II não era homem para serventias, tinha um forte ímpeto centralizador e autoritário, que desprezava aproximações arrogantes e concelhos interesseiros. Tal haveria de lhe valer alguns amuos e conspirações, que chegaram ao ponto da planificação de um atentado, falhada e devidamente vingada por mãos próprias. É este rei que reanima a empresa dos descobrimentos, uma vez que seu pai, D. Afonso V, se tinha virado para as conquistas de África, ao bom estilo dos interesses da nobreza, mais vocacionada para as honrarias da guerra do que para os negócios aburguesados das descobertas, que desprezavam. D. João retira poderes e influência às grandes famílias aristocratas, nomeadamente aos duques de Bragança ou Viseu, concentrando apenas em si a direcção do reino e das suas opções. No seu reinado Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança, Álvaro de Caminha inicia a colonização de S. Tomé e Príncipe, Pêro da Covilhã ruma à Etiópia em busca do Prestes João… Não vamos aqui aprofundar os avanços cartográficos e científicos das escolas portuguesas de navegação, as políticas secretas de Estado face aos avanços no domínio da geografia mundial, bem como a estratégia do Tratado de Tordesilhas ou a recusa de apoio aos devaneios de Colombo. Pretende-se aqui, evocando o nascimento do príncipe Afonso, seu filho, a 18 de Maio de 1475, assinalar o outro grande projecto do “Príncipe Perfeito”, que ficaria por conclui numa manhã trágica à beira rio.


D. João II

Filho único de D. João II com Dª Leonor de Viseu, D. Afonso era muito querido do rei, devendo-se-lhe o nome da ilha mais pequena do arquipélago de S. Tomé e Príncipe, justamente “Príncipe”. Para este filho, D. João II preparava o mais glorioso dos reinados. Se, por um lado, lhe haveria de deixar um reino dono do mar e de todo o seu potencial, por outro, havia sabiamente conduzido uma diplomacia com os reis de Castela, de maneira a casar o seu filho com a filha mais velha dos castelhanos. Mas que interesse teria ele nisso? Ora, Isabel de Aragão, a dita princesa, era a filha mais velha dos reis católicos de Castela e Aragão, reis que tinham um único filho homem, passível de herdar o trono. Contudo, esse filho, Juan, era de saúde muito débil e cujo futuro pouco prometia. Sabendo-o, D. João II quer casar a única herdeira possível do trono castelhano com o seu filho, que, não tendo irmãos (que pudessem casar com a princesa castelhana e assumir com ela o trono de Castela e Aragão), acabaria herdando sozinho os dois tronos, unificando-os sob a tutela do rei de Portugal. O casamento dá-se, contando o príncipe apenas 15 anos e a princesa 20, sendo que tudo se preparava para o cumprimento dos planos de D. João II.

Menos de um ano depois, os reis de Castela procuram dissolver o casamento. Vêem a conjuntura avançar inevitavelmente para o agravamento da saúde do seu herdeiro sem que deixasse descendência, o que levaria a que o filho do rei de Portugal herdasse as duas coroas. Contudo, as relações preferenciais que tinha D. João II com o Papa, não levaram as pretensões castelhanas a bom termo, dando-lhes a causa como aparentemente perdida. Acontece então que, a 13 de Julho de 1491, passeando o príncipe Afonso de Portugal a cavalo pelas margens da Ribeira de Santarém, cai e morre, alegadamente da queda. São misteriosas as circunstâncias dessa morte, na medida em que houve apenas uma testemunha a presenciar o “acidente”, o aio de D. Afonso, que, por sinal, terá partido abruptamente para Castela no próprio dia da morte do príncipe. Não é difícil supor que os reis castelhanos, não tendo outra maneira de evitar uma união ibérica às mãos de Portugal, tenham conspirado a morte do príncipe herdeiro português, dando cobertura ao aio, posto a soldo para cometer o assassínio. Não estando nada disto provado, poderemos apenas duvidar das circunstâncias estranhas do acidente e verificar quem beneficiou desta morte.



Em desespero, o rei ainda tentou que D. Jorge de Lencastre, seu filho bastardo, pudesse herdar o trono, fazendo-o mestre das ordens de Avis e Santiago, e concedendo-lhe o ducado de Coimbra (cujo filho, D. Jaime, seria futuro donatário de Torres Novas). Contudo, interesses alheios ao rei, incluindo os da própria rainha, haveriam de conseguir a proibição do Papa para tal, acabando por ser um irmão da rainha a herdar o trono, por testamento de D. João. Seria o então Duque de Beja, D. Manuel, irmão da rainha, cunhado e primo do rei, o futuro “Venturoso”, D. Manuel I.