Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, abril 14, 2006

- A mais triste Páscoa -


Relato contemporâneo do pogrom de 1507, em Lisboa.

Ao longo dos primeiros anos de 2000, sucedem-se, por muitas terras de Portugal, as comemorações dos 500 anos da entrega de Foral novo pelo rei D. Manuel I. Torres Novas não é excepção, assinalando esse momento memorável em 2010. Contudo, nesse mesmo período, não se assistiam apenas às epopeias marítimas, ou aos proveitos comerciais, nem só de profundas reformas e de certa prosperidade viviam as nossas gentes, tornando-se necessário lembrar momentos menos felizes e que convêm reter. O ano de 1506, ano em que seria finalmente ratificado o Tratado de Tordesilhas pelo Papa, foi um ano especialmente difícil para uma população que, logo em Janeiro, começara a sentir os efeitos de uma forte peste, que chegara a matar cerca de 130 pessoas por dia. Tratava-se de um período de profunda seca, vinda já do Verão anterior, factor que, aliado à falta de higiene inerente aos tempos ou à abundância de lixo que grassava pelas cidades, viria a potenciar os efeitos da dita peste. Contudo, a mentalidade da época haveria de lidar com estes factores naturais de uma forma muito própria, e tendo seres humanos como únicas vítimas: A matança de judeus no “Pogrom de Lisboa”, a 19 de Abril de 1506. Recuemos então.

Entre 1450 e 1480, vive-se em Portugal um tempo de especial estabilidade entre as autoridades cristãs e a comunidade judaica residente. Os judeus constituíam, então, referência no domínio da medicina, advocacia, geografia, economia e finanças, chegando mesmo a ocupar o cargo de ministro de Estado. Contudo, a crescente perseguição de que eram alvo em Castela, acusados de heresia e deicídio, levaria a que muitos buscassem em Portugal a paz e segurança necessários ao desenvolvimento da sua actividade. Ora, essa actividade era sobretudo financeira, exercendo-a no decorrer do desenvolvimento comercial, propiciado por um tráfego marítimo em rápida ascensão. Contudo, já nas Cortes de 1472 se haviam mostrado preocupações pela monopolização que os judeus faziam da área comercial e financeira do reino, o que constituía um sintoma precoce do que seguiria. Este mal-estar e clima de desconfiança, inveja e insegurança de parte a parte, que se vivia já, fora fortemente intensificado no ano de 1484 e em diante, quando maiores contingentes de judeus chegam a Portugal, fugidos da Inquisição espanhola, gente desenraizada, sem casa ou trabalho, e que vem aumentar a instabilidade já existente. A integração destes imigrantes, auxiliados pelas comunidades judaicas já instaladas, acaba por aumentar a concorrência aos mesteirais e mercadores portugueses, que, tendo-os por hereges, desenvolvem um ódio crescente que se alimenta, não só de razões económicas, mas também religiosas. Ao tempo, D. João II procura refrear os ânimos, evitando uniões concertadas contra os judeus, mas punindo a divulgação do judaísmo.

A escalada deste ódio tomaria proporções consideráveis quando, a 31 de Março de 1492, os reis católicos de Castela, pretendendo a unificação religiosa, expulsam por decreto todos os judeus não convertidos. Cerca de 90 000 judeus terão, então, entrado em Portugal, com a conivência de D. João II, que terá recebido dinheiro dos seus representantes, bem como técnicos judeus especializados na metalurgia e outras artes bélicas (afim de custear a alimentar a guerra com o Islão), em troca da permissão para fixação destas comunidades no reino. A tolerância do rei para com os judeus, que se devia essencialmente aos proveitos financeiros que a Coroa deles tirava (como mercadores ricos que eram), sofre um grande abalo quando, após a morte de D. João II em 1495, o seu primo e sucessor D. Manuel pretende negociar casamento com Dª Isabel, princesa de Castela.


D. Manuel I

Só que esta impõe como condição a expulsão de todos os hereges de Portugal antes da sua chegada, ao que o novo rei acede através do Decreto de 5 de Dezembro de 1496. Contudo, D. Manuel sabia que a expulsão dos judeus implicaria a perda da imensa riqueza, intelectual e financeira que estes encerravam. Procura então adiar e adaptar aos seus interesses o compromisso que fizera com a princesa. Assim, a partir de 1497, dá início a um processo de aliciamento à conversão, concedendo vastos privilégios, chegando mesmo a ordenar campanhas de conversão forçada aos resistentes, que chegavam a ser arrastados até às pias baptismais.


Decreto da conversão geral, por D. Manuel I em 1497.

Esta situação atingiria o auge em 1506, mais propriamente no dia 19 de Abril. Como anteriormente referido, este ano de terrível seca propiciava e agravava uma peste que espalhava a mortandade pelo reino. A mentalidade da época, fortemente condicionada pelos padrões religiosos de então, buscava no Divino as razões de tais castigos e a sua remissão. Multiplicavam-se as missas e procissões, com centenas de populares, o que fomentava ainda mais o contágio. Num desses ajuntamentos, na Igreja de S. Domingos, junto ao Rossio de Lisboa, tendo alguns clamado ter visto uma chama brilhante saída do crucifixo do altar, logo se tomou a visão por milagre e pronuncio do tão desejado perdão divino. Por azar seu, um judeu convertido lembrou-se de comentar o que, provavelmente, não passaria do reflexo solar no crucifixo, e de sugerir que “era melhor que fosse um milagre de água e não de fogo, pois, com a seca, é de água que precisamos!”. Ora os cristãos, tomando isto por zombaria, caem sobre o pobre, matando-o e queimando-o logo ali, junto à igreja. O seu irmão, que ali veio interceder pelo moribundo, também acabaria de igual sorte. Ficaria conhecido por “Pogrom de Lisboa” ou a “Matança da Pascoela”, os três dias que se seguiram. Tomada pela fúria e logo incitada pelos frades dominicanos, move-se a população por Lisboa fora, em busca de outros judeus, crendo que, matando-os, livraria o reino do pecado da heresia destes falsos cristãos, que mantinham o culto judaico, apesar do baptismo cristão. Ao longo desses dias, e sem que o rei pudesse controlar a populaça em fúria, foram invadidos, pilhados e incendiados os lares judaicos, as suas famílias perseguidas, mulheres violadas, grávidas com fetos arrancados, crianças mortas com requintes de malvadez, etc. Todos mortos, atirados pelas janelas e queimados em fogueiras improvisadas nas ruas. Chegam-nos descrições de judeus e até de portugueses, como o próprio Damião de Góis, da imensa violência, do cheiro intenso a carne humana queimada, dos gritos, das fugas, do ódio daqueles 3 dias. Quando tudo terminava, à falta de gente para matar, contavam-se cerca de 4000 vítimas mortais… e um reino certamente menos redimido.

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