Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, dezembro 09, 2005

-Pela janela fora –



Já lá vai o tempo em que, por aqui, se resolviam os problemas atirando-os janela abaixo… Foi um tempo em que os portugueses não se lamentavam tanto como agora pois agiam por mãos próprias. Contra condes e marqueses, reis e rainhas, padres e papas, temos um Passado repleto de indignação e de iniciativa. Um espírito que se perde neste democrático marasmo de abstencionismo e lamechice.

Pois foi “pela janela fora”, que no 1º de Dezembro de 1640 se deu inicio à resolução de um problema com uns já fartos 60 anos de idade. Caía então de um dos balcões do antigo Palácio da Ribeira, um Secretário de Estado português ao serviço de um rei estrangeiro. Mas, como de costume…recuemos:

Posto o desaire em Alcácer Quibir (1578), desaparecido el-Rei D. Sebastião e terminado o curto reinado (2 anos) do Cardeal D. Henrique, chega-se a um impasse em que, de entre os netos de D. Manuel, se esperava o novo rei. Filipe toma a dianteira, reivindicando para si o trono de Portugal. Acontece que Filipe era já o 2º de seu nome na linha de reis castelhanos. Filho de Carlos V, Filipe herdara e liderava agora um império de força extrema, rico, bem organizado e em expansão, o que num Portugal derrotado e sem rumo, acaba por dividir a sociedade entre defensores e opositores a uma união com Espanha. Filipe insiste e dispõe-se mesmo a reivindicar o trono pela via militar, pelo que logo se procura resolver a questão diplomaticamente. Convocadas as Cortes para Tomar, em 1580 decide-se a favor de Filipe, o primeiro de Portugal, o 2º de Espanha. Aí, o príncipe compromete-se com uma série de premissas que visavam garantir uma administração independente de Portugal, mantendo-se o reino intacto nas suas instituições e identidade. Posto isto, Portugal sente imediatamente um considerável alívio económico, beneficiando do bem estar financeiro espanhol, proliferando o comércio e, consequentemente a classe média.

A partir de cerca de 1630, tudo isto se inverte. Já com Filipe IV de Espanha no poder, a frente de guerra aberta com os franceses pende para o lado destes, a Espanha entra em crise e logo, Portugal também. É então que o descontentamento face à ocupação estrangeira se evidencia. Os compromissos feitos em Tomar vinham sendo insistentemente atropelados, verificando-se o aumento de impostos, a ocupação de cargos de prestígio em Portugal por elementos espanhóis, etc. Por outro lado, Madrid ordena o encerramento dos portos portugueses aos seus inimigos, que, por sua vez, acabam por atacar o Nordeste brasileiro. Isto leva à derrocada do comércio português, encarecendo produtos, diminuindo o poder de compra, fragilizando uma classe média habituada a lucrar. O aumento da carga fiscal provoca a rebelião popular, que sai à rua um pouco por todo o país, embora com especial incidência em Évora.

Alguns meses antes da data que agora se celebra, um grupo crescente de algumas dezenas de nobres dissimula uma causa comum, a restauração da independência. Eram essencialmente jovens, uma vez que a fidalguia de mais idade se encontrava destacada em Madrid ou recatadamente à espera do resultado da conjura. Um plano é urdido secretamente na última noite de Novembro. No pátio posterior do “Palácio do Almada” (actual Palácio da Independência) juntam-se os cabecilhas do movimento, a coberto do colégio jesuíta de Stº Antão por onde entravam. É então que na manhã de 1 de Dezembro, pelas 9 horas, cerca de 40 homens neutralizam a guarda do palácio real, sobem até aos aposentos da vice-rainha, a Duquesa de Mântua, obrigando-a a assinar uma ordem de rendição pacífica aos regimentos estacionados no castelo de S. Jorge e nas fortalezas ribeirinhas. Entretanto dirigem-se até outros aposentos, os do Secretário de Estado Miguel de Vasconcelos, um português que assumia funções enquanto representante de Castela no governo do reino. Era um burocrata, elevado a um posto para o qual não havia sido educado, insuflado de uma soberba e desdém que cedo lhe granjearam muitos inimigos entre as mais velhas famílias da nobreza lusa. Assim, neste dia de decisões nem a nacionalidade lhe valeu a vida, e tendo ainda procurado esconder-se dentro de um seu armário de documentos, traiu-se por sons que provocou, logo sendo descoberto, alvejado a tiro e, diz-se que ainda vivo, atirado janela fora junto com alguma prataria e outras riquezas que aí conservava. O povo exultante acorreu à oferta e parece que pouco restou do infeliz.

É então aclamado rei D. João, Duque de Bragança, legítimo herdeiro do trono por ambas as linhas parentais, de origem real. Ao princípio ainda relutante em assumir a liderança do movimento, o Duque acabou por anuir à insistência de sua esposa, Dª Luísa de Gusmão, à qual se atribui a célebre frase: “Antes rainha uma hora que duquesa toda a vida”. Pois, por morte de seu marido, chegou mesmo a reger o país na menoridade do filho Afonso, ficando como uma das mais persistentes e tenazes rainhas de Portugal.

É certo que só em 1668 se encerraria a guerra causada pela reacção castelhana, contudo, o resultado de uma decisão lícita e corajosa, foi o saldo inestimável que é um pedaço de terra, onde livremente se criem gerações e transmitam os valores de uma memória comum. Creio ser essa a ambição que leva ainda, alguns de nós, a celebrar este dia, 365 anos depois.