Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

quarta-feira, maio 24, 2006

- A “Invencível Armada” -



No Verão de 1588, dava-se a maior batalha naval alguma vez assistida desde a época clássica. Um conjunto de 130 navios de guerra entrava em águas inglesas, a mando de Filipe II de Espanha, com o objectivo de depor a “rainha herege” e restituir a coroa britânica à Igreja Católica. Assinalam-se, agora, 418 anos da sua partida desde o porto de Lisboa.

É discutível até que ponto Portugal se pode ou não integrar nesta expedição. Na verdade, haviam oito anos desde a união dos dois tronos ibéricos sob o comando do rei de Espanha. Desde 1580 que Portugal deixara de existir enquanto reino soberano e dono dos seus desígnios, agora entregues às mãos dos administradores e burocratas espanhóis. Assim, oficiais, marinheiros, mercadores, artesãos, etc., todos passam ao serviço de D. Filipe II de Espanha, o I de Portugal. Da mesma forma, também seus tratados e alianças são quebrados e vilipendiados, em benefício das novas fidelidades. Recuemos…

Unificada a Ibéria, pretende este rei alastrar os seus domínios e influência pela Europa e mundo conhecido. Estabelecidas alianças com outros reinos europeus e garantido o incondicional apoio do Papa, havia, antes de mais, que garantir o completo domínio das rotas marítimas e relações comerciais inerentes, sua principal fonte de riqueza. Contudo, subsistia nessa altura um importante entrave a esse plano, a pirataria inglesa. Ao Norte, a Inglaterra vinha, internamente, vivendo tempos muito conturbados. Um tempo em que se acendiam já fogueiras na rua, para queimar os apologistas do Protestantismo. Estes autos de fé e outras perseguições, foram apoiados e instigados por Roma, como forma de luta contra a deriva anti-católica que grassava na Inglaterra. Desde Henrique VIII que o reino estava de relações cortadas com o Vaticano, por questões religiosas e políticas, contudo, seriam as suas duas filhas a protagonizar o referido período de conturbação social na Inglaterra quinhentista. D. Maria I, católica, ao contrário de seu pai, reabilita as relações com o Papa, declarando-lhe fidelidade e perseguindo os defensores do protestantismo no seu reino. Contudo, este reinado não durará muito, encurtado por uma doença mortal que leva a rainha sem que deixasse descendência. Suceder-lhe-ia, assim, a irmã mais nova, Elisabete, filha de segundo casamento e protestante como seu pai. Este novo reinado reiniciará, assim, o corte nas relações com o Vaticano, bem como com todos os reinos fiéis ao Papa. Ora, entre esses reinos fiéis a Roma, encontrava-se a poderosa Espanha, dona dos mares e principal difusora do catolicismo no mundo.


Elisabete I de Inglaterra.

Então, e em conluio com o Papa, o rei de Espanha inicia um plano para substituir Elisabete I por Maria I da Escócia, católica e rebelada contra Inglaterra, mobilizando a aristocracia inglesa católica. O facto de, em 1587 e por ordem de Elisabete, Maria I e outros destacados católicos terem sido executados, leva a que o rei espanhol mobilize todos os católicos da Europa contra a “rainha herege”. Trata-se de uma sucessão de revezes que levam D. Filipe II a tomar esta decisão. Acumulando com a questão religiosa da permanente desobediência de Inglaterra ao Papa, a Espanha sofria então pesadas perdas ao longo das suas rotas comerciais no mar. Na verdade, Elisabete I dava cobertura à acção de piratas e corsários ingleses, que infestavam o Atlântico e o Pacífico, em busca de galeões espanhóis carregados de riquezas variadas, que pilhavam sucessivamente. A própria coroa inglesa reservava para si parte importante desses roubos, apesar de receber as críticas e apelos dos espanhóis contra esses actos.


Rei D. Filipe II de Espanha.

É então que o rei de Espanha decide atacar Inglaterra, tomar o reino e atribuir-lhe um monarca católico. Para tal, começa a reunir uma armada de fortes e pesados navios, chegando a um total de 130 unidades, entre 22 galeões e 108 navios mercantes, que rumam ao estuário do Tejo, ao largo de Lisboa. Aí, e a despeito da antiga aliança entre Portugal e Inglaterra, juntam-se as embarcações portuguesas, num total de 31, sendo que o próprio comandante da armada, o Duque de Medina Sidónia, se deslocaria no galeão português S. Martinho. Da mesma forma, mobiliza um total de cerca de 30 mil homens, prontos a integrar a, então chamada, “Invencível Armada”. A 28 de Maio (1588), levantam âncora os primeiros navios, partindo de Lisboa rumo ao Canal da Mancha, onde se haveriam de encontrar com a frota inglesa. A partir de 20 de Julho dão-se as primeiras refregas ao largo de Inglaterra. Os ingleses, detentores de uma frota com cerca de 100 unidades, menores que as espanholas e nem todas preparadas para combate, adoptam uma estratégia de prudência, mantendo-se à distância e procurando envolver a armada espanhola, que se dispunha em meia-lua. Lideradas pelo famoso corsário, Francis Drake, as embarcações inglesas surgem por detrás, mais velozes e ligeiras, atacando e retirando-se, numa estratégia que obriga os espanhóis a dispersar a armada, desorganizando-se.



Tendo os maiores galeões espanhóis de se dirigir ao porto de Calais, para arranjos, são surpreendidos por uma ideia do referido corsário inglês. Um inaudito episódio naval que arrumaria para sempre as aspirações espanholas ao domínio dos mares, e marcando, por outro lado, o início de uma ascensão da armada britânica que culminará nos séculos seguintes com a construção de um verdadeiro império. Sucede que, na calada da noite de 27 de Julho, encontrando-se esses pesados navios alinhados no cais, é ordenado o lançamento de oito “bulotes” em direcção aos mesmos. Essas pequenas embarcações, apenas contendo o seu piloto, estavam atestadas de explosivos e todo o tipo de combustíveis, que, levadas velozmente até ao centro do cais, chocam entre os navios espanhóis, explodindo com tudo em redor. É tão grande o alarido e a mortandade, que, aos espanhóis, resta uma confusa debandada para Sul, num total de 53 navios que Lisboa acolhe, alguns dias depois.

sexta-feira, maio 12, 2006

- O sonho desfeito -



Vários foram os momentos na História das relações peninsulares, em que Portugal quase foi espanhol e que a Espanha quase foi portuguesa. É certo que “nuestros irmanos” tomaram sempre a dianteira neste aspecto, chegando a remeter-nos a uma dominação de 60 anos, contudo, há um momento na História em que o oposto quase aconteceu, um sonho que el-Rei D. João II acalentava, mas que se desfez um dia, numa cavalgada que tira a vida ao príncipe herdeiro, o jovem Afonso de Portugal. Recuemos...

D. João II, ou “o Príncipe Perfeito”, como ficou conhecido, procede a um reinado extremamente severo e organizado. Um homem de ideias claras, empreendedor e obstinado, que, coroado rei, passa a ajustar o governo do reino ao seu carácter, quando muitos preferiam o contrário. Esses muitos, seriam naturalmente os da nobreza, uma aristocracia habituada a influenciar o rei e o seu governo em favor dos seus interesses individuais. Ora, D. João II não era homem para serventias, tinha um forte ímpeto centralizador e autoritário, que desprezava aproximações arrogantes e concelhos interesseiros. Tal haveria de lhe valer alguns amuos e conspirações, que chegaram ao ponto da planificação de um atentado, falhada e devidamente vingada por mãos próprias. É este rei que reanima a empresa dos descobrimentos, uma vez que seu pai, D. Afonso V, se tinha virado para as conquistas de África, ao bom estilo dos interesses da nobreza, mais vocacionada para as honrarias da guerra do que para os negócios aburguesados das descobertas, que desprezavam. D. João retira poderes e influência às grandes famílias aristocratas, nomeadamente aos duques de Bragança ou Viseu, concentrando apenas em si a direcção do reino e das suas opções. No seu reinado Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança, Álvaro de Caminha inicia a colonização de S. Tomé e Príncipe, Pêro da Covilhã ruma à Etiópia em busca do Prestes João… Não vamos aqui aprofundar os avanços cartográficos e científicos das escolas portuguesas de navegação, as políticas secretas de Estado face aos avanços no domínio da geografia mundial, bem como a estratégia do Tratado de Tordesilhas ou a recusa de apoio aos devaneios de Colombo. Pretende-se aqui, evocando o nascimento do príncipe Afonso, seu filho, a 18 de Maio de 1475, assinalar o outro grande projecto do “Príncipe Perfeito”, que ficaria por conclui numa manhã trágica à beira rio.


D. João II

Filho único de D. João II com Dª Leonor de Viseu, D. Afonso era muito querido do rei, devendo-se-lhe o nome da ilha mais pequena do arquipélago de S. Tomé e Príncipe, justamente “Príncipe”. Para este filho, D. João II preparava o mais glorioso dos reinados. Se, por um lado, lhe haveria de deixar um reino dono do mar e de todo o seu potencial, por outro, havia sabiamente conduzido uma diplomacia com os reis de Castela, de maneira a casar o seu filho com a filha mais velha dos castelhanos. Mas que interesse teria ele nisso? Ora, Isabel de Aragão, a dita princesa, era a filha mais velha dos reis católicos de Castela e Aragão, reis que tinham um único filho homem, passível de herdar o trono. Contudo, esse filho, Juan, era de saúde muito débil e cujo futuro pouco prometia. Sabendo-o, D. João II quer casar a única herdeira possível do trono castelhano com o seu filho, que, não tendo irmãos (que pudessem casar com a princesa castelhana e assumir com ela o trono de Castela e Aragão), acabaria herdando sozinho os dois tronos, unificando-os sob a tutela do rei de Portugal. O casamento dá-se, contando o príncipe apenas 15 anos e a princesa 20, sendo que tudo se preparava para o cumprimento dos planos de D. João II.

Menos de um ano depois, os reis de Castela procuram dissolver o casamento. Vêem a conjuntura avançar inevitavelmente para o agravamento da saúde do seu herdeiro sem que deixasse descendência, o que levaria a que o filho do rei de Portugal herdasse as duas coroas. Contudo, as relações preferenciais que tinha D. João II com o Papa, não levaram as pretensões castelhanas a bom termo, dando-lhes a causa como aparentemente perdida. Acontece então que, a 13 de Julho de 1491, passeando o príncipe Afonso de Portugal a cavalo pelas margens da Ribeira de Santarém, cai e morre, alegadamente da queda. São misteriosas as circunstâncias dessa morte, na medida em que houve apenas uma testemunha a presenciar o “acidente”, o aio de D. Afonso, que, por sinal, terá partido abruptamente para Castela no próprio dia da morte do príncipe. Não é difícil supor que os reis castelhanos, não tendo outra maneira de evitar uma união ibérica às mãos de Portugal, tenham conspirado a morte do príncipe herdeiro português, dando cobertura ao aio, posto a soldo para cometer o assassínio. Não estando nada disto provado, poderemos apenas duvidar das circunstâncias estranhas do acidente e verificar quem beneficiou desta morte.



Em desespero, o rei ainda tentou que D. Jorge de Lencastre, seu filho bastardo, pudesse herdar o trono, fazendo-o mestre das ordens de Avis e Santiago, e concedendo-lhe o ducado de Coimbra (cujo filho, D. Jaime, seria futuro donatário de Torres Novas). Contudo, interesses alheios ao rei, incluindo os da própria rainha, haveriam de conseguir a proibição do Papa para tal, acabando por ser um irmão da rainha a herdar o trono, por testamento de D. João. Seria o então Duque de Beja, D. Manuel, irmão da rainha, cunhado e primo do rei, o futuro “Venturoso”, D. Manuel I.