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ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, março 30, 2007

Artigo de Opinião: Aristides, o “Grande Português”



O vencedor do concurso “Grandes Portugueses” (da RTP) é, para mim, claríssimo (e não estou a falar de Salazar), bem como o verdadeiro sentido e valor do voto nacional. Esqueçamos, por ora, a votação nos dois primeiros no pódio (Salazar e Cunhal), fruto de outras quezílias e portadora de outro tipo de mensagem.

Como seria de esperar, os portugueses colocaram o escol mais representativo do seu património histórico nos 10 primeiros lugares. Símbolos de um passado comum que nos identifica e agrega enquanto povo, depositários do que melhor Portugal tem sido enquanto nação, os 7 últimos finalistas preenchem o espaço que lhes era devido e que todos lhes reservavam à partida. A História fala por si, nem eles precisavam de "defensores" (e quão maus alguns deles!)

Mas eis que surge o 3º classificado, aquele que aponto como o vencedor inequívoco deste concurso. E porquê? Comecemos por recordar que, antes do programa, certamente apenas uma minoria dos portugueses se encontrava familiarizada com a figura de Aristides de Sousa Mendes. Tratava-se quase tão só de mais um capítulo na análise da História do Estado Novo, essencialmente abordado pelos especialistas. Contudo, esta série de debates e a passagem de uma biografia magistralmente apresentada por José Miguel Júdice, deu a conhecer aos portugueses um ilustríssimo anónimo que sem dúvida os cativou. Se atentarmos nas percentagens (ver no fim do artigo), verificamos que existem dois claros fossos nas votações, o primeiro entre Salazar e os demais, o segundo entre os 4 primeiros e os demais. Ficando em 3º (com 13%), Aristides fica ainda à frente do próprio D. Afonso Henriques (12,4%), deixando depois a léguas as vastíssimas glórias da nação. Ora isto não é por acaso.

Os muitos que votaram no diplomata Aristides de Sousa Mendes por certo reconhecem o alto valor dos restantes candidatos, personagens que povoam o imaginário e a alma de qualquer português. Contudo, não embarcando em salazares e cunhais, destinaram o seu apreço não a um líder astuto, não a um aventureiro valente ou a um poeta divinamente inspirado. Elegeram, sim, um Exemplo de Vida, e é isso que a memória de Aristides nos sugere. Homem esforçado, recto, honesto, sereno, humilde, generoso, amigo, ele é a imagem do cristão cumpridor, que, de resto, fazia questão de ser. Até nos seus vícios a maioria de nós se pode rever, numa certa cedência aos pequenos mimos que a instrução nos dá a conhecer e o dinheiro ajuda a conquistar. Mas foi um homem que, a determinado momento da vida, se vê confrontado consigo próprio e com uma consciência lavrada no culto do amor ao próximo. Pai, extremoso e empenhado, de uma família numerosa, não pôde condescender com o paradoxo último que, para qualquer um de nós, constitui a bestialização indiscriminada de seres instruídos e civilizados, como era o caso das muitas famílias e individualidades que se lhe deparavam em fuga da perseguição nazi.

Consciente de todos os riscos em que incorria, Aristides tomou uma opção: salvar quantos pudesse, passando inúmeros vistos à revelia das ordens que tinha. Nunca procurou desculpar ou desvalorizar a sua falta como profissional, assumindo sempre a sua desobediência. É também do caso deste homem que se extrai o mais triste defeito do Dr. Salazar (que custou muitas vidas): a sua teimosia orgulhosa. Nunca condescendeu às várias cartas recebidas, apelando à situação gravosa de toda a numerosa família de Aristides, algumas enviadas pelo próprio e largos anos após o episódio julgado. Sereno e sempre digno, Aristides foi acatando o desprezo dado aos seus sentidos apelos, apenas repetidos face à situação em que via os filhos. De igual modo, serena e digna foi finalmente a sua morte.

É, por isso, fácil de entender a predilecção de tantos portugueses por este "anónimo" agora conhecido. Aparte as doutrinas, regulamentos, hierarquias ou conveniências, eis o exemplo de um dos muitos casos pessoais em que foi preciso agir de acordo com o coração, prevalecendo o desprendimento militante em prol do outro (próprio de quem vive a Fé nos momentos de provação) sobre o apego a uma existência cuidadosa (próprio de quem vive ciosamente esta vida).

Portanto, quer pela fama recém adquirida, quer pela lição de vida que constitui, o verdadeiro voto dos portugueses foi sem dúvida este, na medida em que não está refém da competição absurda ou das quezílias ideológicas convertidas em votos para Salazar ou Cunhal. Excluindo, pois, estes dois, o facto de Aristides ser destacado de entre os demais vultos, revela a antiga e actual expressão do sentimentalismo português: a doce condescendência perante a vulnerabilidade do semelhante.

Comentando, por outro lado, a retumbante vitória de Salazar (41%)… pior ainda que desatar aos gritos, como fez a Drª Odete Santos em directo, seria desvalorizar a expressividade deste voto. Também ele comporta uma mensagem que importa reter. Por certo a maioria dos votantes em Salazar não subscreveria, com esse voto, o retorno das antigas práticas e pontos de vista, ou não votariam dessa forma. Mas, conscientes de que esse voto não comporta ameaça para as instituições democráticas, assinalam um protesto. E como? Recorrendo à memória colectiva, recordam-se os portugueses das inegáveis qualidades intelectuais e profissionais do Dr. Salazar. A auto-disciplina, a coerência, o despojamento, igual empenho em receber ou dar ordens, rigor, perfeccionismo, persistência, etc., são as características que naturalmente fariam de Salazar um funcionário modelo fosse em que regime fosse e ocupasse o cargo que ocupasse. Como é evidente, é esse o carisma de que a figura de Salazar hoje beneficia na tal memória colectiva. É a atitude, é a autoridade (que lhe conferiu a sua austeridade e frugalidade) que paira ainda forte no imaginário de muitos portugueses. Ora, num momento em que é regra desancar na classe política actual, classificando-a como interesseira, corrupta, eleita mais por abstenção que por devoção, natural será que se destaque o modelo oposto de se estar na política, ou seja, o da Causa Pública. Salazar, como figura histórica e passada que é, encarna esse papel, pelo menos nesse imaginário.

Concluindo, esta votação nada tem a ver com “saudades do Passado” ou “tentativas de branquear o fascismo”, tratando-se tão só (ou tanto) de um sinal dos tempos, um protesto sincero, um desabafo desassombrado que merece séria reflexão por parte das classes dirigentes. Não é o sangue e o despotismo que se pede, mas sim a honestidade e o sentido do dever que se exige. Quanto aos brados alarmistas face a esta “vitória”, evite-se credita-la na acção de uma qualquer “extrema-direita florescente”. Tal, seria colocar holofotes no sítio errado e potenciar protagonismos indesejados. É preciso serenidade e lucidez. Sigamos, pois, o exemplo de Aristides de Sousa Mendes, esse grande português.

(1º António de Oliveira Salazar: 41,0% - 2º Álvaro Cunhal: 19,1% - 3º Aristides de Sousa Mendes: 13,0% - 4º D. Afonso Henriques: 12,4% - 5º Luís de Camões: 4,0% - 6º D. João II: 3,0% - 7º Infante D. Henrique: 2,7% - 8º Fernando Pessoa : 2,4% - 9º Marquês de Pombal: 1,7% - 10º Vasco da Gama: 0,7% - Nº total de votos válidos recebidos: 159.245 - Nº total de chamadas recebidas: 214.972)