Recuemos...

ARTIGOS DO SEMANÁRIO REGIONAL TORREJANO, "O ALMONDA". por Carlos Leitão Carreira

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

- Ficar “Cheché” neste Entrudo -




Aproxima-se a Quaresma e, para contentamento de muitos, o seu Entrudo. Um período de festa, de folia, dos tradicionais abusos e no entanto, a tradição já não é o que era… A concepção de que o Carnaval são os desfiles das escolas de samba brasileiras, transformou o nosso Entrudo numa triste tentativa de plagiar um espírito que não é o nosso. Chega-se ao ponto de contratar vedetas das novelas e da música brasileira para dar um gosto a Rio de Janeiro aos nossos cortejos. Assim, entre desfiles à chuva e um público mortiço e embasbacado que pouco ou nada vibra com aquilo, lá se vai adulterando e esquecendo uma tradição tão europeia. Recuemos.

Importa, antes de mais, destrinçar esta confusão entre “Carnavais” e “Entrudos”. “Entrudo” é a palavra certa, mais antiga e popular e que se perde para um “Carnaval” com menos conteúdo. “Entrudo” é um desenvolvimento da expressão latina “Entroitos”, ou seja, “entrada”. Mas entrada onde? Entrada na “Quaresma”. “Quaresma” também oriunda do latim “Quadraginta”, “Quadragésima”, “Quarentena”, ou seja quarenta dias. Quarenta dias de preparação para a Páscoa, estabelecidos pela Igreja, durante os quais se deverão fazer sacrifícios para purificação do corpo e da alma. Assim, o jejum e a abstinência da carne (não se deverá comer carne nem estabelecer contacto sexual) são imperativos nesta quarentena. Desta forma, e na perspectiva de 40 dias de abstinências, o Entrudo transforma-se num momento de exageros, de abuso de tudo aquilo que será proibido nos dias subsequentes. Ora, enquanto “Entrudo” era a expressão utilizada junto das camadas mais populares, “Carnaval” surge como novidade nos meios citadinos, uma palavra importada da tradição festiva e cosmopolita italiana, que se torna numa expressão chique nas festas organizadas nos salões da capital portuguesa. “Carnaval”, ou seja, “Carne Vale”, que na expressão italiana significa o “Adeus à Carne”.

Como se pode ver, a tradição nacional conserva um sentido muito próprio para esta quadra específica, a entrada (Entrudo) num período de profundo significado religioso. Como tal, temos as nossas próprias tradições populares e manifestações festivas. A tradição europeia cola-se a determinadas manifestações pagãs, profundamente enraizadas na população, e que, nos primórdios da Igreja, esta acabou por integrar no seu próprio calendário, à semelhança de tantas outras festividades pagãs já existentes, como forma de prevalecer culturalmente. Assim, sobreviveram até hoje certos hábitos e rituais festivos, onde impera o bizarro e o profano, como os demónios e espíritos mascarados que saem a pregar partidas e a assustar os vizinhos e transeuntes. Ouvem-se tambores e cajados a bater nas portas, em baldes e janelas, produzindo tanto barulho quanto possível.

Mas, se na província a tradição remonta a muitos séculos de existência, na cidade, o bizarro assume formas e conteúdos de origem e significado diferentes. Como se refere no título deste artigo, vamos falar dos “Chechés”. Para ninguém será estranha a expressão “Estás a ficar Cheché!”, como quem diz, a ficar tontinho. Ora, o que tem a haver um tontinho com um “Cheché”? Recuemos novamente.

Nos inícios do séc. XIX, a vitória da causa liberal sobre o absolutismo, a introdução da Constituição e do Parlamento e a criação de uma nova classe dirigente, resulta numa profunda reforma rumo ao progresso tecnológico. A introdução do comboio gera uma revolução económica e social de tal ordem, ao ponto de fazer emergir uma classe social, por sinal ainda muito fraca em Portugal, a burguesia. O incremento económico gerado pela linha-férrea e pelo desenvolvimento industrial, resultou no rápido enriquecimento de muitas famílias de proprietários e novos empresários, que adoptaram um novo estilo de vida, o “estilo burguês”. Culturalmente, este estilo expressa-se pelo “Romantismo”, na literatura, na pintura, no vestuário, no lazer, etc. O “dinheiro novo”, nas mãos de famílias cultas e de gostos refinados, origina um modo de vida ostensivo, onde a aparência e um rigoroso código de conduta social eram cultivados por homens e mulheres. Ora, apesar de algumas famílias terem enriquecido, a grande maioria da população permanecia pobre ou remediada, servindo as ditas famílias das mais variadas maneiras. Assim, enquanto o “Carnaval” burguês era vivido com a classe e o requinte das festas inspiradas no Carnaval italiano, o “Entrudo” popular era vivido com o deboche e por vezes a brutalidade de quem procura, num momento, libertar tensões e revoltas de todo um ano. Assim, na cidade, o “Entrudo” era normalmente vivido de forma caricatural, e, naquele dia, a população era livre de dizer o que pensava dos seus senhores. Surge assim o personagem “Cheché”. O “Cheché” era um mascarado, vestindo um antigo traje senhorial do séc. XVIII (anterior à Revolução Liberal). Numa mão trazia uma grande faca, na outra, trazia uma vara comprida, na ponta da qual estava preso um par de chifres. Assim andavam os “Chechés”, aos pares ou em grupo, com grandes barrigas e muito bem vestidos. Vagueavam pelas ruas da cidade à procura dos senhores burgueses que se passeavam pela rua. Quando os encontravam, pavoneando-se pelas largas avenidas, saltavam e gritavam em seu redor, assustando-os com os facalhões, lançando impropérios e grosserias de toda a espécie. Usavam de linguagem obscena em público, chocando a fina sensibilidade burguesa que muito se ofendia com o vexame imposto. Por fim, o “Cheché” colocaria a grande vara por detrás do senhor, ficando os chifres a descoberto por cima de sua cabeça. A ofensa era bem clara, na verdade, muitos destes senhores já de idade avançada, faziam-se acompanhar de mulheres muito mais jovens, pelo que o povo sugeria desta forma a infidelidade dessas mulheres. O “Cheché” não passava de uma paródia mascarada, escondida, àqueles que o povo considerava serem os verdadeiros chechés, ou seja, os grandes burgueses, velhos, gordos, das pernas arqueadas e falsas aparências, que neste dia de folia eram grosseiramente denunciadas. Assim, o dito “estás a ficar cheché” não é mais que uma reminiscência popular destes antigos foliões, qual celebração da histeria e insanidade humana. Um feliz Carnaval a todos.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Artigo de Opinião: -O passo em frente…à beira do precipício -



Para quem ande atento a jornais e telejornais, não é estranho o ambiente tenso que se vive actualmente entre o “mundo islâmico” e o “mundo judaico-cristão”, o chamado “Ocidente”. Entre todas as quezílias políticas que se têm vivido recentemente com o Irão, surge uma meia dúzia de caricaturas publicadas num pequeno jornal dinamarquês que, de repente, faz estalar o verniz nas relações entre um mundo dividido. Os muçulmanos, radicais ou não, terroristas ou não, saem à rua e em fúria por todo o mundo islâmico. Islâmico e não só, pois já na Alemanha e Inglaterra se fizeram manifestações com vários milhares de imigrantes muçulmanos. Não estou a querer trazer para aqui a questão ridícula de se as caricaturas deviam ou não ter sido publicadas, uma vez que é absolutamente óbvio o desrespeito e a chacota dos seus autores para com a Fé de muita gente, o que não está certo. O problema é que a suposta “liberdade” das democracias ocidentais permite-se as mais aberrantes iniciativas, a despeito da sensibilidade dos próprios cidadãos e, claro, com total desprezo pela de outros povos e civilizações.

Tudo começou com o ataque de 2001 ao World Trade Center, em Nova Yorque, pelo menos para nós, ocidentais. Na verdade, a “guerra” começou há muito tempo para os muçulmanos, talvez desde a forma abusiva como se forçou a criação do estado de Israel, no pós-guerra, em 47 do século passado. A ofensa que constituiu, para todo o mundo islâmico, a expropriação daquela vasta região da Palestina em benefício dos judeus, deu início a uma verdadeira Jihad (“guerra santa”) contra o agressor, ou seja, nós, o mundo ocidental. A presença desdenhosa dos militares e observadores ocidentais, desde a Guerra do Golfo, bem como o constante e incondicional apoio dado a Israel, vem alimentando um ódio crescente, canalizado pelos líderes radicais islâmicos para a população e, em especial, para os jovens. Estes crescem numa relativa pobreza, mas sempre vendo como se vive no outro lado do mundo. O desgosto por não terem acesso à tecnologia, ao conforto, ao lazer e a todo o tipo de liberdades de que a nossa propaganda lhes fala, através das parabólicas, converte-se numa reacção sob a forma de ódio, de condenação moral e do mais completo desprezo pelos nossos valores e modo de vida. Daí à formação paramilitar e a um treino voluntário para o suicídio, é curta a distância.

O passo seguinte foi a reacção ao ataque às torres gémeas. Os Estados Unidos da América iniciaram aquilo a que os líderes islâmicos chamaram de “nova cruzada”. A invasão ao Afeganistão foi o primeiro passo, em busca dos tais “talibans” e do seu líder Bin Laden. Devastada a terra afegã e desconhecido ainda o paradeiro do Sr. Laden, viraram-se para o Iraque. Pintou-se um papão no regime de Saddam Hussein e inventaram-se armas de destruição maciça para justificar a invasão desse pais, aos olhos da opinião pública ocidental. Terminada a acção militar ficou o resto por fazer, e de um povo protegido da manipulação dos grandes líderes religiosos (porque Saddam não ia em conversas de fervor religioso), ficou um povo sem ditador, mas também sem trabalho ou segurança, que agora apenas encontra orientação nesses mesmo líderes, que apontam o dedo ao Ocidente como causa para a sua desgraça.

Eis que, de repente, vindo (aparentemente) do nada, um tal Mahmud Ahmadinejad vem afrontar todo o Ocidente. Olhando directamente para as câmaras diz que “Israel deve ser riscado do mapa”, que “o Holocausto nazi é um mito” ou que “vai dar inicio ao plano de fazer prevalecer o Islão em todo o mundo”. Trata-se do recém-eleito presidente do Irão, país dominado pelo radicalismo islâmico e que acabou recentemente de expulsar os observadores internacionais de energia atómica. Admite preparar-se para enriquecer urânio, afim de produzir energia nuclear, mas quando questionado, rejeita que apenas certos países ocidentais tenham direito a possuir armamento nuclear. Tem, como é óbvio, o apoio de todos os países do Médio Oriente, dos seus notáveis (ainda que encoberto), mas muito especialmente da sua imensa população, guiada cegamente pelos líderes religiosos e espirituais. Esta sua atitude de afronta directa ao Ocidente é tida como coragem, como verdadeira liderança, como divina providência talvez. Não tarda que este homem se transforme num autêntico caudillo para todo o mundo islâmico, que o seguirá na direcção que apontar.

É neste contexto internacional que surgem as recentes caricaturas dinamarquesas ao profeta islâmico Maomé, num momento de sensibilidade e expectativa geral em relação a vários aspectos políticos, como sendo a questão do enriquecimento de urânio pelo Irão e a reacção do Ocidente, a situação clínica de Ariel Sharon e o que sucederá no conflito israelo-palestiniano com a vitória eleitoral do Hamas…

Uma interpretação bélica do al-Corão é cada vez mais facilitada e incitada em todo o mundo islâmico e, muito especialmente, entre os muçulmanos imigrados no Ocidente, que geram em si um sentimento de descriminação que não sofrem. No entanto, essa predisposição não é mais real que o deboche e a total ausência de valores que grassa entre nós e que resulta em aberrações como as ditas caricaturas, por certo condenáveis. Nada é mais perigoso que o confronto directo entre culturas, o choque de civilizações. Tendo em conta que Deus e Alá são uma e a mesma divindade, apesar de com nomes diferentes, que derrota será para todos se for necessária uma 3 Guerra Mundial para que tal se torne evidente, e os homens se saibam respeitar e amar entre si.